segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

O AMOR


O amor, sim, o amor que sinto por ti. O amor une as pessoas. É o tal homem esfarrapado que caminha pela cidade, sem eira nem beira, sem direcção definida. O amor constrói-se, cresce. O amor é o oposto do cálculo interesseiro. O amor é o oposto do negócio. O amor é dar e receber. O amor é o homem sem deveres, sem condições. O amor é o contrário do capitalismo.

A MUDANÇA


Só às vezes tenho a retórica no falar. Há alturas como hoje em que tropeço nas palavras, em que não completo as ideias. Escrever é mais fácil. É claro que para escrever sobre as coisas tenho de emitir juízos mesmo que esteja apenas a descrever. Apesar de, neste momento, me sentir senhor aqui na "Padeirinha", não deixo de ser crítico em relação ao mundo e à televisão. Explora-se a vida das pessoas, expõe-se a vida alheia. Posso estar só, deprimido, mas não tenho de me converter à máquina.
Ainda há respeito, cordialidade, na relação entre as pessoas mas sinto que estamos às portas da barbárie. Tudo é empresarial, tudo visa o lucro. Nunca atinei com a palavra "empresa", sempre prefiro "fábrica". Cortei completamente com a terminologia económica desde a minha passagem infeliz pela Faculdade de Economia do Porto. Aliás, penso que já no liceu, em Braga, não era grande apreciador. Aparte o ensino de Marx, Keynes, Adam Smith, vim dar a um mundo de gráficos, lucros, rendimentos, contabilidade, finança. Levava Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, o "Assim Falava Zaratustra" de Nietzsche para as aulas. E mudei. Mudei quase completamente.

sábado, 28 de janeiro de 2012

O NATAL SOBRE A TERRA


"Quando iremos, para além dos desertos e dos montes, saudar o nascimento do trabalho novo, a nova sabedoria, a queda dos tiranos e dos demónios, o fim da superstição, adorar- nós os primeiros- o Natal sobre a Terra!?"
(Arthur Rimbaud, "Uma Cerveja no Inferno")

A verdadeira vida não é aqui. Por muito que os realistas de esquerda e de direita me venham falar de condicionalismos económicos, do primado da economia, agora sei, como Rimbaud, e também é isto que me mantém vivo, que há um mundo onde somos magos e anjos, onde não há deveres a cumprir, onde atingimos a "nova sabedoria" e o "Natal sobre a Terra". Não, não me venham impor trabalho, sacrifício, escravidão, realismo. Não nasci para isso. Nasci para o novo mundo. Trabalho para isso. Vivo para isso. Não me venham também pregar a maldade inata do homem. Há homens e mulheres livres e outros que podem sê-lo. Há o espírito infinito. Brindemos em sua honra. Dancemos, irmãos, irmãs, dancemos. Aproxima-se o dia. O Grande Meio-Dia.

MÉDICO DE SI MESMO


O problema da tristeza e da alegria, da depressão e da euforia, o problema fundamental da vida. O que é necessário para se ser alegre? Alguns contentam-se com a família, com o dinheiro ao fim do mês, com umas conversas. Não creio que sejam felizes mas vão vivendo. O artista, o intelectual, não se pode contentar com o mesmo, aliás desespera com a rotina. O artista vive da curiosidade, da descoberta, quer dentro de si, quer no mundo. Quando consegue ultrapassar as horas da depressão, o artista vê surgir em si o fogo interior, o fogo da criação. É claro que o artista precisa de comer e de beber. Mas o artista não pode passar a vida a pensar na próxima refeição. Talvez o artista ultimamente tenha desprezado demasiado os seus semelhantes. Ele ainda vibra com as brincadeiras das crianças. Ele vibra com as descobertas do seu espírito. Com aquilo que a sua mão e a sua caneta acrescentam ao mundo. Com aquilo que, para lá da compra e venda, ele consegue pensar, reflectir, sem que esteja sempre obcecado pela mesma ideia. O artista hoje, através do acto da escrita, conseguiu afastar a tristeza. Nem sempre é assim. Não está eufórico mas vive, ultrapassa a economia. Consegue ser médico de si mesmo.

VIVO


Escrevo para me manter vivo. Outros vivem da família, do trabalho. Eu vivo da escrita. Cada nova frase é um sopro de vida. Um triunfo contra a morte e a depressão. Sim, meus amigos, aqui na confeitaria travo batalhas épicas. Tomo dois cafés, gasto a caneta vermelha. Estou vivo, porra! Ainda não é desta que me derrotais, ó arautos da propaganda. A tinta vermelha no papel faz-me renascer.
Levanto a cabeça. A D. Rosa lê. A menina da confeitaria arruma a loiça. As famílias trazem as crianças. Sou, de novo, capaz de cometer loucuras. Estou vivo, porra! Afastai-vos de mim, ó demónios! Sou espírito e corpo. Penso. Há bondade na D. Rosa, nas gentes simples. Simplesmente segui outra via. Às vezes a mente bloqueia. O raciocínio não flui. Mas depois volta. Cavalga. Abre portas.

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

VITA

A Vita está a morrer
raramente escrevi sobre a Vita
tenho sido injusto
a Vita tem estado sempre presente
ontem li
que se acompanhássemos
o crescimento dos nossos animais
seríamos mais felizes

de qualquer forma
cada vez estou mais longe
dos realistas
mesmo dos anarquistas
não me dou com o proletariado
o proletariado não me entende
tenho simpatia por ele
quando é revolucionário
de resto,
raramente falo com ele
também não sou assim
muito sociável
só quando bebo
ou quando estou entusiasmado
de qualquer forma,
acho imbecil
o que passa na televisão
ainda assim
acredito na revolução
mas ouço muito ruído
aparte os instantes de criação
só me divirto
no Pinguim
no Olimpo
ou quando há eventos
com copos
e, claro, com as leituras
que me enriquecem
com a Gotucha
e com as amigas
que, às vezes, aparecem
tudo o resto é tédio
máquina que devora
compreendo porque é que
alguns se suicidam
e volto a ti,
Vita
que já não sais da casota
deveria ter escrito mais
sobre ti.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

O HOMEM E A "VIDA ACTIVA"


"O homem, no sentido dado pelos gregos antigos, só é capaz de tornar-se homem quando se distancia da "vida activa" e se aproxima da vida reflexiva, contemplativa. Só é homem aquele que tem tempo para pensar, reflectir, contemplar", escreveu Thiago Rodrigues Braga na crítica à "Condição Humana" de Hannah Arendt. Segundo Nietzsche, aquele que não reserva, pelo menos, três quartos do dia para si é um escravo. Para Sócrates, "se é apenas para comer, dormir, fazer sexo que o homem existe, então ele não é homem, é um animal". "A dignidade humana só é conquistada através da vida contemplativa, relexiva, uma vida sem compromisso com fins pragmáticos", ainda Thiago Rodrigues Braga. Daí que a maioria dos homens não sejam homens, mas sim escravos. Escravos da "vida activa", da produção, do consumo, do mercado. Prisioneiros da "vida activa", do trabalho, da família, os homens não têm tempo para eles mesmos, para a reflexão, para a filosofia, para a criação. Por isso muitos são completamente ignorantes, completamente formatados pela máquina de propaganda e pela ditadura dos mercados. Já não somos socialistas nem comunistas. Em certos casos, o homem é culpado de não ser curioso, de não seguir a via do conhecimento. Deixa-se dominar pela "vida activa", pela vida prática e não arranja tempo senão para raciocinar de uma forma instrumental. Para ser livre, para ser digno o homem tem de se debruçar sobre as grandes questões da humanidade e debatê-las com outros homens. Só assim se torna verdadeiramente homem, só assim ultrapassará a máquina de propaganda que nos impingem todos os dias. Só assim, e em diálogo com os outros homens que reflectem e com o seu interior, o homem se realizará e derrotará o capitalismo.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

"CAFÉ PARAÍSO" SEGUNDO RUI MANUEL AMARAL


Não sou eu que vou apresentar “Café Paraíso”, o novo livro de António Pedro Ribeiro. Quem vai apresentar o novo livro de António Pedro Ribeiro é ele próprio, lendo alguns dos seus poemas. Ler os poemas: eis a única maneira de apresentar um livro de poesia. A maneira mais justa. Sem explicações, sem ruídos, sem mediações. Em todo o caso, e recorrendo a uma expressão cara a qualquer apresentador profissional de livros, gostaria de partilhar com o venerável público duas ou três ideias muito simples. Ou melhor, duas ou três hipóteses.

“Café Paraíso” é um livro importante. E uso o adjectivo “importante” medindo cuidadosamente cada grama do seu peso. É importante porque este é o melhor livro de APR. É importante porque reúne os melhores poemas que ele escreveu em torno dos cafés. Ou seja, e dito de forma mais simples, reúne os seus melhores poemas. Porque, em rigor, não existe outro tema na obra de APR (também recorro aqui à palavra “obra” de forma intencional): “Sou o poeta dos cafés e dos bares” (p. 90). É certo que existem outros gatilhos para os poemas – as mulheres, o álcool, a política, os amigos, a própria poesia -, mas o contexto da escrita é quase invariavelmente o do café. E mesmo proclamando não ser um “poeta de emendas” (p. 89), este é o seu livro mais depurado.

Mas “Café Paraíso” é também importante porque constitui um objecto estranho no panorama literário português. Sejamos claros: há outros poetas da mesma geração de APR a usar os cafés, os bares, até as tabernas, como leitmotiv para os poemas. Todavia, o estilo de Ribeiro é diferente. Literalmente diferente. A maneira como escreve afasta-o da generalidade da prática poética do nosso tempo. A sua escrita é de uma liberdade desconcertante. De uma simplicidade que desarma o leitor. Não há aqui segundas leituras, segundas intenções, segredos ocultos sob as palavras. Uma mesa de café é uma mesa de café, uma cerveja é uma cerveja, um amigo na noite é exactamente isso: um amigo na noite. Eis, pois, “o último dos poetas românticos”, como ele próprio se intitula, com a melancolia de um lobo solitário.

Na verdade, um leitor experimentado de poesia não sabe o que fazer com estes poemas, não sabe como arrumá-los entre os meridianos e paralelos habituais, no interior dos quadrados perfeitos. Porque nenhum outro poeta dos nossos dias tem a coragem de escrever como APR, ignorando modas, tendências, escolas, tribos e autoridades na matéria. No fundo, sem medo de correr riscos. O campo da poesia, o campo da literatura, é o supremo espaço da liberdade e nem todos arriscam percorrer sozinhos esse imenso território selvagem. É sempre mais fácil seguir o grupo, a tradição, a lição.

Os profetas da morte cercam-me/ por todo o lado/ falam-me de dinheiro, trabalho,/ castrações, conversões/ (…) mas a canção deles amoleceu-me/ depois, em certas noites,/ Dionisos veio ter comigo/ levou-me pela mão/ pôs-me no palco/ fez-me dançar/ ria-me sarcasticamente nas barbas deles/ então toquei a Vida/ amei-a, forniquei-a/ desejei que ela durasse eternamente/ tentei arrastar alguns para o meu barco/ não consegui/ tiveram medo/ segui sozinho/ criei, segui o instinto e a luz (Nietzsche, p. 60).

Ora, se a poesia é uma experiência radical de liberdade, esta é a poesia mais verdadeira. Se a poesia é uma tentativa de resistência, de rebeldia, de insubordinação, esta é a verdadeira poesia. Se o trabalho mais autêntico do poeta é superar a norma, dispor a tradição de pernas para o ar, não há poeta mais autêntico do que António Pedro Ribeiro. Este é “o homem da liberdade” (p. 26), que “não foi feito para a eficácia/ para a norma social” (p. 56), que sistematicamente “sai dos trilhos” (p. 65).

Há dias em que estou/ para além disso/ nem sequer me apetece/ ser realista/ já há realistas que cheguem/ porra!/ Não tenho que ser como os outros/ não tenho que ser como a maioria dos outros/ não tenho que escrever o que os outros escrevem/ não tenho que dizer o que os outros dizem/ nem tenho de andar atrás deles (O único poeta, p. 76).

Este ponto leva-me a outro, que tem que ver com esta apresentação em particular. Estamos a lançar um livro cujo pano de fundo é quase sempre o dos velhos cafés do Porto – do Piolho, do Ceuta, do Aviz -, e estamos a fazê-lo no mais cinzento, insípido e asséptico dos cafés: o café da Fnac do Norteshopping. Uma espécie de “Café Paraíso”, mas de celofane.

Justamente por isso este é o lançamento mais certeiro de todos os que o livro conheceu até agora (as sessões anteriores ocorreram em alguns dos cafés evocados nos poemas). Esta é a apresentação que encaixa no espírito mais genuíno de “Café Paraíso”: um espírito desalinhado, desarrumado, contestatário em relação aos diversos sistemas, incluindo o “sistema literário”, de que a Fnac é uma das principais referências, se não mesmo a principal.

Lançar este livro no café de uma Fnac é como instalar a confusão no campo do inimigo. Um acto subversivo, um ovo perigoso, uma formidável semente de revolução no coração do sistema. E se é verdade que, neste caso, a poesia imita a vida e a vida imita a poesia, então talvez estejamos todos, neste exacto momento, dentro de um dos poemas de António Pedro Ribeiro. Um poema sobre um grupo de tipos que, numa fria noite de Janeiro, assiste ao lançamento de um livro rebelde chamado “Café Paraíso”, no espaço climatizado de um centro comercial.

Rui Manuel Amaral

20/01/2012

VEM, MUSA


Esta gente fala, fala e não diz nada. Dinheiro, netinhos e saúdinha. Acho que nem sequer são da minha espécie. Não sou deles definitivamente. Nem sequer sou de Deus, do deus deles. Não me venham com a história dos fracos e dos oprimidos! Eu só quero altura! Venham a mim as criancinhas. Talvez elas entrem no reino. Não, essas caras de gentinha não me convencem. Dai-me algo mais. Dai-me a luz. Não sois capazes. Porque não vens, ó mago irmão? Porque não vens, ó deusa? Canso-me da aldeia, canso-me do Sancho Pança. Onde está a minha mulher, o meu homem? Onde está aquele que traz a verdade? Quem sou eu, aqui há 43 anos, às portas do apocalipse e da sabedoria louca? Nada criais. Cansais-me com as vossas conversas. Nada acrescentais. Nada me dais. Nem vinho. Não, não sou do negócio. O vil metal nada me diz. Aparece tu, mulher bela, aparece tu, que eu estou a dar em louco aqui. Só te vejo na televisão. Há outro mundo. Outra vida. Estou com Rimbaud. Reino. Sou realmente o poeta. Aquele que anuncia o novo mundo. Quem me segue? Quem percorre os desertos? Musa, porque não vens para mim? Surpreende-me. Estou farto de ver mortos. Satisfaz a minha alma, a minha mente. Vem, encanta os meus dias e as minhas noites. Sim, há outra vida. Sinto-a. Vejo-a. Quero-a.

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

O POETA


Esqueci-me do caderno em casa. Agora tenho de escrever nas costas dos poemas. Não há dúvida de que estou melhor do que há dez anos. Mais senhor. Agora sou realmente poeta e artista. Alguém com uma carreira nas artes. Uma estrela em alguns meios. Mas ainda e sempre o homem só que escreve à mesa de uma confeitaria de Vilar do Pinheiro. O homem que lê de quem por aqui se desconhecem as excentricidades e as glórias passadas. Um homem que consegue ser completamente louco, completamente fora. A quem o tédio e a rotina vão fazendo perder a alegria. Um homem que está sempre a cair e a levantar-se. Que mantém o hábito de criar no café e na confeitaria. Que não adere às conversas da vidinha. Um homem que já foi a tribunal por motivos políticos. Um homem que tem uma história. Que tem recebido muitos elogios nos últimos dias. Que vai beber aos grandes. Que adora as miúdas lindas.
No fundo, agora só queria que uma dessas miúdas lindas aparecesse e começasse a falar com ele de literatura. Os amigos não sabem que ele pode passar-se como o Rui Costa. Os amigos não estão em parte significativa da sua vida. Só a Gotucha.
Era mesmo bom que essa miúda aparecesse. O homem tem a barriga inchada. Já não é propriamente um príncipe. É o poeta António Pedro Ribeiro. Quem conhece o poeta António Pedro Ribeiro? Que faz ele nesta confeitaria de Vilar do Pinheiro?
O poeta não é definitivamente do povo. Já não é marxista-leninista nem anarquista social. Não exalta o povo. A maior parte das vezes acha-o pequeno, vulgar, sem brilho, sem visão, sem inteligência. Talvez ainda acredite nos jovens e nas crianças. E em alguns outros que não se converteram à máquina. No fundo, é um nobre, um aristocrata. Vem de outras eras. Escreve enquanto os outros falam de reformas. Não é, nunca foi um trabalhador. Olha para a miúda do café e deseja-a. O rapaz é muito simpático. As pessoas só falam de dinheiro e pagamentos, conversa que aborrece de morte o poeta. E depois já cá faltava a saúdinha. Dinheiro e saúdinha. Esta gente resume-se a isso. Passam a vida a trabalhar e a falar nisso e dão graças a Deus. Que gente sem luz, que gente sem altura. E tu a defendê-los, ó poeta! Larga-os, deixa-os de vez. Tu és o criador, o homem de Nietzsche, o bailarino. Que gente vulgar, que gentalha. Só alguns se safam. Faz falta uma vanguarda, uma minoria esclarecida para tomar conta disto. Uma vanguarda que ocupe a televisão e que faça a revolução. E de que vale que tirem cursos se permanecem limitados, imbecis? Acredita, poeta, poucos e poucas te acompanham. Continua a fazer circular a tua mensagem. Mas toma como certo que em certos meios não vale a pena. Não te armes em Jesus, segue antes Zaratustra. Para quê vir ao mundo se não vemos a luz, se não nos afastamos da "felicidade" da maioria? Para quê vir ao mundo se não aprofundarmos ao máximo a nossa personalidade, se não descobrirmos o homem interior? Para quê vir ao mundo se não gozarmos na plenitude? Não, não sejas comunista nem socialista. Afasta-te dos pequenos. Não te deixes contaminar. Os pequenos também são os macacos que sobem uns para cima dos outros, os detentores do poder e da máquina. Sim, afasta-te. Segue o caminho da grande solidão. Ama as tuas companheiras, os teus companheiros. Não precisas de sair da confeitaria para atingir o ouro. Estás nos teus castelos, no reino que tens perseguido. Agora sim. Deixa-te ficar. Criaste um mundo. Como na infância. Aqui não há merceeiros. Aqui tornas-te naquele que és.

ESPÍRITO INFINITO


Pensar
pensar o mundo
não ter os conhecimentos de outros
em certas áreas
mas discutir
entrar nas conversas do Pinguim
depois voltar á "Padeirinha"
á limitação do futebol e das novelas
e sentir-me de novo sábio
espírito infinito
em Hegel
não, há reinos que ainda não atingi
mas não acredito no determinismo
no homem malvado por natureza
acredito que alguns de ñós
são capazes
de ultrapassar a mercearia
os jovens dizem que a sua geração
foge a estas conversas
posso não saber tudo
todos os pormenores
da História e da cultura
mas vim cá provocar algo
tenho em mim um deus
quero construir
não apenas destruir
não tenho que ser sempre coerente
como Zéca Afonso ou Che Guevara
cometi erros
estive bêbado
tive alucinações
não sou um cidadão exemplar
não mereço prémios
nem ando atrás deles
mas tenho um percurso
sim, construi um percurso
uma história
não preciso que estejam
sempre a bater-me palmas
embora também viva delas
sou narcisista
mas sei que isto não se resume
a vir buscar o pão
a enfiar-se em casa
a jantar
e a ver televisão
sei que o espírito
é muito mais do que isso
o espírito voa
alcança novos mundos
houve quem lhes chamasse
deuses, o deus único,
não, não me queiram reduzir
á matéria
ao quotidiano
á mercearia
sou muito mais do que isso
cumprimento as pessoas
por uma questão de educação
mas estou muito para além
chovem festins
nas profundezas de mim mesmo
danças, rituais, sexo
vi-o nos teus olhos
ontem no Pinguim

a vossa publicidade não me vence
festins em mim
noite fora
uma vez mais
sigo a estrada da loucura
a sabedoria louca
jardins imensos
palácios de inverno
são meus os reinos de outrora.


Padeirinha, Telha, 24.1.12

domingo, 22 de janeiro de 2012

Com o simples e o prático
vos contentais
não lograreis
nunca elevar-vos

afastai de mim
as vossas crianças
se não quereis
que elas ouçam
o meu canto.

CÉPTICO


Ao Rui Costa

Chego ao "Vip"
e ouço os mexericos do prédio
as pessoas continuam
entretidas na vidinha de sempre
a olhar para a TV
a dar beijos nas crianças
as crianças?
As crianças, por este andar,
vão ser iguais aos pais
com a mente limitada
adormecida
agarrados às pequenas felicidades
á destreza no trabalhinho
e nas tarefas domésticas
nenhuma elevação
nenhuma arte
ao menos no Piolho à noite
bebe-se cerveja atrás de cerveja
celebra-se a divindade
bebe-se cerveja
às portas do apocalipse
como os dois jogadores de xadrez
a mexer as peças
impassíveis
no meio da guerra

O sr. Fernando
o sr. Manuel
saúdam triunfalmente
a minha entrada no "Guarda-Sol"
fazem sentir-me como um rei

de facto, Rui,
é com pena minha
que constato
a falta de inteligência
do homem pequeno
a redução à crendice
e á mercearia
de facto,
mais vale ser céptico
mais vale fechar-se
no rock n' roll
e na literatura
mais vale irmos
para o sótão
inventar músicas
em vez de dar paleio
a esta gente
bom dia, boa tarde
para quê defendê-los
se eles não nos dão
importância?
Sim, para quê,
se eles voltam sempre
à vidinha
mesmo que preguemos
no facebook
ou na praça
enfim,
valham-nos os companheiros
e as companheiras

hoje, Rui
estou céptico
em relação à revolução
à das mentalidades
e à política
para quê trazer
filhos ao mundo
se o mundo não serve
se o mundo mata?

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Leio os grandes
e observo os longos
cabelos das mulheres
apetece-me tocá-los
algumas vezes
fui acusado
de ser de outras eras
de outros tempos
agora sei que
estou no tempo certo
que chamo os xamãs
e os malditos
que estou pronto
para a grande celebração.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

O GRANDE FOGO INTERIOR


Depois de Cerveira regresso aos "Sonhos de Verão". De facto, tenho estado do lado da consumação, da poesia, da despesa, do desperdício, da loucura e não da economia, do útil, da poupança. Arde em mim o "grande fogo interior" de que falam George Bataille e Edgar Morin. Tenho corrido riscos, tenho tomado decisões com desrazão, tenho seguido o amor, a dança, a música. Tudo isso me tem defendido de um mundo técnico, mecânico, gelado, cronometrado, onde tudo se passa. Tenho estado claramente do lado da poesia, "da participação, do fervor, da admiração, da comunhão, da bebedeira, da exaltação", como diz Edgar Morin. Mesmo que os meus escritos às vezes sejam meramente descritivos. Sim, creio no amor e na poesia. A partir dos 17/18 anos tomei essa opção, mesmo que depois passasse por grandes depressões e me fechasse muito em mim próprio. Não sou, de facto e definitivamente, do trabalho, dos horários, das obrigações. Talvez por isso esteja aqui na confeitaria a escrever um texto que sei que alguns lerão, talvez por isso de há uns seis anos a esta parte me dedique em exclusivo à escrita e à declamação. Talvez por isso me consiga afastar da máquina e dos que se deixam levar por ela. Talvez por isso, desde que frequentei a Faculdade de Economia do Porto, tenha ganho asco às palavras "lucro", "finança", "mercado", "empresário". Porque acredito mesmo no "grande fogo interior", na arte, na criação pura e sou capaz de insultar os deuses. Sei também que o "homo demens" de Morin, o libertar das pulsões, pode levar à maldade, aos instintos mesquinhos mas também ao amor, à criação. Sei definitivamente que há domínios da vida onde a economia e a ciência não chegam.