quarta-feira, 12 de outubro de 2011
PROJECTO DE ROMANCE
PROJECTO DE ROMANCE
Depois de ter ouvido aquele àlbum “Strange Days” dos Doors, pela segunda vez, a sua vida nunca mais foi a mesma. Tinha sido um amigo do Liceu Sá de Miranda, o Jorge, que lho emprestara. João já conhecia as letras mordazes do Roger Waters dos Pink Floyd em “The Wall”, “The Final Cut” ou “Animals”, mas ouvir “People Are Strange”, “You’re Lost, Little Girl”, “Moonlight Drive”, ...“Horse Latitutes” e sobretudo “When The Music’s Over” foi uma explosão, um nascer de novo. Aquele órgão, aquela bateria hipnóticos e quando o Jim Morrison gritava “We want the world and we want it now!”, bem quando o Jim gritava “We want the world!” o mundo começava ali, acabavam ali todas as infâncias, todas as missas, todas as antigas convicções caíam por terra. João era outro. Nunca mais foi o mesmo. A partir daí, João comprou todos os discos dos Doors, ouvia incessantemente “Break On Through”, “Light My Fire”, “Riders On the Storm”, “Roadhouse Blues” e, claro, “The End”, o outro grande épico dos Doors, o tema edipiano do assassino do pai, do amante da mãe. Outra grande volta à cabeça. Depois, aos 18, quando estava no 12º ano, em Braga, foi ver “Apocalipse Now” ao cinema por causa do “The End”. Mas o filme, com Marlon Brando naquele papel genial do coronel Kurtz no meio da selva a recitar poemas, com aquela descida aos infernos da guerra e da loucura, marcou João para sempre. Depois, quando estava na Faculdade de Economia do Porto, leu “Assim Falava Zaratustra” de Nietzsche, graças a “Daqui Ninguém Sai Vivo”, a biografia de Morrison. Bem, escusado será dizer que toda a finança, toda a contabilidade, toda a mercearia, toda a economia foi posta em causa. João ia propositadamente com “Zaratustra” para as aulas para provocar. Nunca mais suportou o mundo da finança e da economia. Até aí tinha sido um rapaz tímido que escrevia uns versos ingénuos e inocentes. A partir daí tornou-se, quando não estava deprimido, num personagem insolente, dionisíaco, que provocava na pose e na escrita. Começou a beber a sério. A frequentar a noite e os bares. Ainda assim algo puro, belo, alguém que se passeava pelo aquário da vida nocturna. Foi também com os concertos dos Xutos, dos Mão Morta, dos GNR, dos UHF que cresceu. Principalmente com os UHF e os Mão Morta. E com os livros que ia lendo sobre o anarquismo, sobre Marx, Lenine e Trotsky ou deles próprios. Interessou-se pela revolução. Aderiu ao PSR por causa do “Combate”. Conheceu a Ana, a companheira do resto dos seus dias, mesmo depois do namoro acabar.
E era Braga que o acolhia. O “Tuaregue”, o “Deslize”, o “Honni Soit”. Escreveu poemas como “Ressaca”, “Ébrio 29”, “Representação”. Tentou formar bandas como os Ébrios mas só houve um concerto numa discoteca. Foi nessa altura que conheceu o Jaime Lousa, o jornalista e literato, que viria a morrer na miséria, e que o convidou para entrar num filme surrealista onde teria de ir comprar um ovo ao hipermercado “Feira Nova”. Como resultado, uns dias depois do primeiro e único concerto dos Ébrios, João é acusado de ocupar o “Feira Nova”, na sequência de um protesto contra o consumismo e as grandes superfícies. Tinha 22 anos, as beatas fugiam dele na rua, os pedreiros largavam o trabalho, os velhos faziam-lhe continência. Tinha 22 anos e era o Che Guevara de faca de plástico no bolso. Depois, bem depois andou seis meses a comprimidos. Uma dose cavalar. Por causa de um filme que, afinal de contas, teve pouco de alucinação. João acreditou que estava a fazer História, que estava a fazer a revolução, chorava porque pensava que estava tudo feito. Já conhecia o trago amargo da depressão mas nesse ano apanhou com uma de sete meses. A cara inchou, não conseguia comunicar. Mas antes disso queria ser um cantor, queria ser o novo Jim Morrison, tinha a presença mas não tinha a voz. Tinha-a sim para recitar e não para cantar, como se veio a verificar mais tarde. Ainda assim tentou outras bandas. Talvez nunca o tivessem compreendido verdadeiramente.
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