sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

A VIDA LIVRE


Espetam-nos com a publicidade
com a felicidade fabricada
tentam fazer-nos a mente
com programas imbecis
e notícias manipuladas
e um homem resiste
tem que resistir
mesmo que esteja só à mesa
sobretudo se está só á mesa
sem amigos, sem amigas
só com a sua criação
sim, ainda é capaz de criar
de arrancar palavras
de as espetar na folha
não cede à Júlia Pinheiro
mas a propaganda insiste
mais e mais

tem ido pouca gente
á Poesia de Choque
mas o poeta sabe
que esta é a sua hora
que mais tarde ou mais cedo
hão-de bater à sua porta
porque é um não-alinhado
mas os gritos continuam
a vir da televisão
é uma tortura
o poeta nem sempre
consegue estar acima
das vozes irritantes
mas hoje é diferente
o poeta supera-se
vai buscar-se
é espírito e coração
está muito para lá
do ruído
constrói-se
constrói em si
o homem
sem preconceitos
apetece-lhe berrar
desafiar a castração

paz e harmonia,
dizem eles
tratam-nos como atrasados mentais
destroem as possibilidades de criação
filhos da puta!
Ide-vos embora
da minha mente
sei bem o que quereis
quereis-me domesticado,
deprimido
mas eu hoje
sou mais forte
não embarco nas vossas conversas
ide-vos!
Conheço-vos, ó psicólogas,
quereis-me num trabalhinho,
adaptado,
de volta à máquina
incapaz de incendiar
de ser esse
que descobri aos 17 anos

sois mesmo execráveis
com as vossas falinhas mansas,
ó barbies televisivas
não me levais
mesmo que esteja
só contra o mundo
como agora
falas demais, ó coquete,
irritas-me

sou um homem
penso,
sonho,
invento
não dareis cabo de mim
tenho em mim a liberdade
não aceito o modelo único
no fundo,
a partir de certa altura,
desconfiei de vós,
ó macacos e macacas,
não tenho de ser igual a vós
afastai-vos
eu amo a vida
não a vossa vida
mas a vida livre

sois pequenos
sois das meias-medidas
não sou vosso
sou de uma nova espécie
venho de uma estrela diferente
bebo dos grandes
sois tão pequenos
tão dóceis, tão obedientes
tão da máquina
não vos amo
nem sequer invejo
certos poetas, certos escritores
que ganham prémios
e vão aos colóquios
são aliados dos economistas
e da felicidade da maioria
não, não me arrependo
do meu percurso
dos meus filmes
da minha loucura
afrontei os poderes
algumas vezes
não me arrependo
não me comprais
com os vossos prémios
não me atireis
as vossas bonecas
posso estar só
mas estou mais lúcido
do que nunca
as palavras vão surgindo
cavalgam na minha mente
como te compreendo, Gotucha
como odeio os que te maltratam
eu não segui a via do suicídio,
caro Rui Costa,
porque ainda acredito na vida
numa outra vida aqui
numa vida plena
de curiosidade e sabedoria
passo os dias a ler
enriqueço-me
afastai de mim
os gráficos e as percentagens!
Falo uma linguagem diferente
da dos economistas
não sou apenas eu, claro,
há Eduardo Lourenço, há Manuel António Pina

este é mais um daqueles épicos
que nunca mais acabam
lá vêm eles
com as notícias
lá tentam eles uma vez mais
não me levais
sou da vida livre.


Vilar do Pinheiro, "Sonhos de Verão", 24.2.2012

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