quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

"CAFÉ PARAÍSO" SEGUNDO RUI MANUEL AMARAL


Não sou eu que vou apresentar “Café Paraíso”, o novo livro de António Pedro Ribeiro. Quem vai apresentar o novo livro de António Pedro Ribeiro é ele próprio, lendo alguns dos seus poemas. Ler os poemas: eis a única maneira de apresentar um livro de poesia. A maneira mais justa. Sem explicações, sem ruídos, sem mediações. Em todo o caso, e recorrendo a uma expressão cara a qualquer apresentador profissional de livros, gostaria de partilhar com o venerável público duas ou três ideias muito simples. Ou melhor, duas ou três hipóteses.

“Café Paraíso” é um livro importante. E uso o adjectivo “importante” medindo cuidadosamente cada grama do seu peso. É importante porque este é o melhor livro de APR. É importante porque reúne os melhores poemas que ele escreveu em torno dos cafés. Ou seja, e dito de forma mais simples, reúne os seus melhores poemas. Porque, em rigor, não existe outro tema na obra de APR (também recorro aqui à palavra “obra” de forma intencional): “Sou o poeta dos cafés e dos bares” (p. 90). É certo que existem outros gatilhos para os poemas – as mulheres, o álcool, a política, os amigos, a própria poesia -, mas o contexto da escrita é quase invariavelmente o do café. E mesmo proclamando não ser um “poeta de emendas” (p. 89), este é o seu livro mais depurado.

Mas “Café Paraíso” é também importante porque constitui um objecto estranho no panorama literário português. Sejamos claros: há outros poetas da mesma geração de APR a usar os cafés, os bares, até as tabernas, como leitmotiv para os poemas. Todavia, o estilo de Ribeiro é diferente. Literalmente diferente. A maneira como escreve afasta-o da generalidade da prática poética do nosso tempo. A sua escrita é de uma liberdade desconcertante. De uma simplicidade que desarma o leitor. Não há aqui segundas leituras, segundas intenções, segredos ocultos sob as palavras. Uma mesa de café é uma mesa de café, uma cerveja é uma cerveja, um amigo na noite é exactamente isso: um amigo na noite. Eis, pois, “o último dos poetas românticos”, como ele próprio se intitula, com a melancolia de um lobo solitário.

Na verdade, um leitor experimentado de poesia não sabe o que fazer com estes poemas, não sabe como arrumá-los entre os meridianos e paralelos habituais, no interior dos quadrados perfeitos. Porque nenhum outro poeta dos nossos dias tem a coragem de escrever como APR, ignorando modas, tendências, escolas, tribos e autoridades na matéria. No fundo, sem medo de correr riscos. O campo da poesia, o campo da literatura, é o supremo espaço da liberdade e nem todos arriscam percorrer sozinhos esse imenso território selvagem. É sempre mais fácil seguir o grupo, a tradição, a lição.

Os profetas da morte cercam-me/ por todo o lado/ falam-me de dinheiro, trabalho,/ castrações, conversões/ (…) mas a canção deles amoleceu-me/ depois, em certas noites,/ Dionisos veio ter comigo/ levou-me pela mão/ pôs-me no palco/ fez-me dançar/ ria-me sarcasticamente nas barbas deles/ então toquei a Vida/ amei-a, forniquei-a/ desejei que ela durasse eternamente/ tentei arrastar alguns para o meu barco/ não consegui/ tiveram medo/ segui sozinho/ criei, segui o instinto e a luz (Nietzsche, p. 60).

Ora, se a poesia é uma experiência radical de liberdade, esta é a poesia mais verdadeira. Se a poesia é uma tentativa de resistência, de rebeldia, de insubordinação, esta é a verdadeira poesia. Se o trabalho mais autêntico do poeta é superar a norma, dispor a tradição de pernas para o ar, não há poeta mais autêntico do que António Pedro Ribeiro. Este é “o homem da liberdade” (p. 26), que “não foi feito para a eficácia/ para a norma social” (p. 56), que sistematicamente “sai dos trilhos” (p. 65).

Há dias em que estou/ para além disso/ nem sequer me apetece/ ser realista/ já há realistas que cheguem/ porra!/ Não tenho que ser como os outros/ não tenho que ser como a maioria dos outros/ não tenho que escrever o que os outros escrevem/ não tenho que dizer o que os outros dizem/ nem tenho de andar atrás deles (O único poeta, p. 76).

Este ponto leva-me a outro, que tem que ver com esta apresentação em particular. Estamos a lançar um livro cujo pano de fundo é quase sempre o dos velhos cafés do Porto – do Piolho, do Ceuta, do Aviz -, e estamos a fazê-lo no mais cinzento, insípido e asséptico dos cafés: o café da Fnac do Norteshopping. Uma espécie de “Café Paraíso”, mas de celofane.

Justamente por isso este é o lançamento mais certeiro de todos os que o livro conheceu até agora (as sessões anteriores ocorreram em alguns dos cafés evocados nos poemas). Esta é a apresentação que encaixa no espírito mais genuíno de “Café Paraíso”: um espírito desalinhado, desarrumado, contestatário em relação aos diversos sistemas, incluindo o “sistema literário”, de que a Fnac é uma das principais referências, se não mesmo a principal.

Lançar este livro no café de uma Fnac é como instalar a confusão no campo do inimigo. Um acto subversivo, um ovo perigoso, uma formidável semente de revolução no coração do sistema. E se é verdade que, neste caso, a poesia imita a vida e a vida imita a poesia, então talvez estejamos todos, neste exacto momento, dentro de um dos poemas de António Pedro Ribeiro. Um poema sobre um grupo de tipos que, numa fria noite de Janeiro, assiste ao lançamento de um livro rebelde chamado “Café Paraíso”, no espaço climatizado de um centro comercial.

Rui Manuel Amaral

20/01/2012

2 comentários:

Tiago disse...

Sim, mas qual a data/hora do evento?

A. Pedro Ribeiro disse...

já foi, já decorreu no dia 20, sexta. Obrigado pela preocupação, amigo.