quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

ESPÍRITO E GRAÇA


É madrugada. Chove lá fora. Tenho pesadelos. A minha alma é acossada pelos demónios. Não sei se sou homem ou se me estou a transformar em algo mais. Bebi seis minis no "77". Fiquei ao balcão e olhava silenciosamente as mulheres. Que mundo entra nelas? Que novo mundo entra nelas? Aparentemente divertem-se nesta nova Babilónia. Estamos aqui para gozar. Que mais estaríamos a fazer aqui? Mas, depois, no dia seguinte, vem sempre a castração do desejo. A sociedade só permite que gozes até certo ponto. Não permite o gozo permanente. Mas elas até parece que gozam em permanência. Queres viver o mundo delas. Queres filhos delas. Continuar a criação. Já não sabes se és homem ou se te estás a transformar noutra coisa. Os teus demónios abençoam-te e fazem-te alcançar a clarividência. Todos os grandes livros que leste estão em ti. Atingiste a Luz. As mulheres olham-te e dão-te a Luz. Ouves o relógio. Viverias sem relógios e sem televisores. Vives agora num mundo sem castrações. és um dos eleitos. As mulheres olham-te, tentam compreender-te mas parece que receiam chegar a ti. Também te tens fechado na pose da estrela distante. Tens de descer da pose. Tens de descer ao mundo. Procuras o "país dos teus filhos". Por isso, as tens de procurar e amar. Brincas com elas, fazes-las rir quando estás em palco. ÉS o mais louco e o mais insolente dos poetas. Mas ficas muito tempo em silêncio, a observar. Há uma certa beatitude em ti, que vem da infância. Distingues claramente, traças uma fronteira entre o animal de palco e o ser silencioso que observa. Os gatos gemem lá fora. Falam a linguagem da criação. Há qualquer coisa que ultrapassa o corpo. Há qualquer coisa que faz de ti um rei de outras paragens, de outras eras. Ulisses, Artur de Camelot. Não te resignas ao corpo, como Platão. És da Ideia. Nasceste para a Ideia. Não vieste desempenhar tarefas manuais. ÉS aquele que nasce e volta a nascer. Os negócios dos homens nada te dizem. Poeta, a madrugada é tua. Cantas com os animais o cântico da criação. Zaratustra vai descer da montanha, vai ter com os homens à praça pública. Sabe que pode ser vencido, humilhado até. Mas sabe que terá que ser assim. Aproxima-se o Grande Meio-Dia. Marlon Brando no "Apocalipse Now". Os seus discípulos veneram-no como a um deus. Mas nenhum o conhece realmente, nenhum atinge o seu estado de lucidez, nenhum vê a luz como ele vê, estão contaminados pelo mundo do trabalho e do sacrifício. Ele é espírito. Dança com os demónios e com os fantasmas. Vive deles. É Hamlet. Atinge a Ideia e a Graça. Talvez por isso ande encerrado em mim mesmo, Gotucha. Talvez por isso não te esteja a dar atenção. Sabes, o mundo das coisas práticas, do quotidiano fica muito lá em baixo. Sou essencialmente Espírito e Ideia. O mundo dos negócios e das notícias é realmente menor, superficial. Estou no campo da filosofia, da ausência de violência. Vivo o homem bom, a criança sábia, aquele que se ultrapassa a si mesmo mas que retorna eternamente a si mesmo. Não mais guerras. Não mais escravos. A manhã é real. Beija-me. Vem ter comigo como a mulher.

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