domingo, 22 de fevereiro de 2009
À MESA DO HOMEM SÓ. ESTÓRIAS
à mesa do homem só. estórias, A. Pedro Ribeiro
por Claudia Sousa Dias a 20.2.09
Paixão, delírio, desvario e perda. São os principais ingredientes deste pequeno grande livro de poesia de A. Pedro Ribeiro que, nesta fase, dava os primeiros passos nas lides da escrita poética. Os textos datam da segunda metade da década de 1990 e início dos anos 2000. É notório o talento que escapa por entre as frases de uma escrita errante. Uma escrita essencialmente emotiva, elaborada a partir do cenário do quotidiano dos cafés das cidades do Porto e de Braga.
Uma das facetas mais angustiantes da obra por se tratar de uma temática recorrente, em diversos trabalhos de A. Pedro Ribeiro, é o da necessidade da fuga, de evasão e perseguição da miragem de um paraíso perdido, através da procura de refúgio no álcool, o alívio momentâneo no sexo. No primeiro caso, as alucinações despoletadas pela bebida aproximam-no da poesia provocadora de Morrison, enquanto que, no segundo, colocam-no muito próximo do panteão dos poetas do erotismo norte-americano como é o caso de Miller ou Bukovski.
As provocações sucedem-se em poemas como
“Ressaca”
Na ressaca
das noites ébrias
liberto pássaros
absorvo conversas
Tudo parece
absurdo convencional
diante do meu fogo
diante da embriaguez
permanente.
É notório o sentimento de insatisfação constante, fruto do espartilho do tédio, da monotonia, do desespero impresso pela patine da rotina dos dias sempre iguais que impelem a procura de mundos diferentes, onde a solução mais imediata é aquela que parece ser o portal de saída, de fuga, o álcool - abre a cortina para o paraíso construído na imaginação a partir da alteridade da consciência e do desequilíbrio sináptico que transparece no apelo a Dionysos em “Ébrio 29”.
“…ao raiar da aurora
avistaremos a terra prometida
desfilaremos entre os anjos
sobre o tapete celestial…”
Do mesmo impulso de fuga à deprimente e feia realidade do quotidiano, nasce o sonho da Beleza e do Prazer, onde se apela ao excesso, trazido aparentemente pelo arquétipo representado deus ou pela figura alegórica da Embriaguez, embora, na realidade, o desejo mais primário, mais fundamental é, precisamente, o Desejo, trazido pela mão de Aphrodite, arquétipo incarnado pela Musa, a quem é dedicado o livro…
“Valete de Espadas”
pétalas murchas
cálices desleixados
(…)
o sangue não corre
a alma não morre
entediada
tantas horas
longas demoras
no meu quarto
a espera
ansiosa
a vida lá fora
as conversas
…tu…
…já não vens…
…hoje…
Prosseguem a angústia e a asfixia, que agarram a alma, numa espiral de auto-destruição como um pântano de areias movediças em
“Távola”
(…) Amor sobre um penedo de saudade
rebento suicida
outras eras
idades
A catarse
o ciúme
ao rubro
o crime
o filme
estórias ao espelho
à mesa a tua imagem
do homem só acesa.
Um poema com duas opções de leitura, a multiplicar as interpretações e a aumentar exponencialmente a riqueza polissémica do texto que dá o título ao livro.
Em vário textos de à mesa do homem só. estórias a linguagem utilizada, aparentemente desconexa, é a projecção de caóticos sonhos povoados de erotismo, que reflectem uma poética tipicamente onírica, marcada por uma profusão de imagens que se sobrepõem e reproduzindo um caos interior, caracterizado por um vórtice de contradições à vista desarmada.
Poemas como "Anjo em Chamas", dedicado a Jim Morrison, ou “Cristo Ébrio” deliciam pela absoluta subversão face ao convencional, à norma, às regras, a toda e qualquer proibição ou dogma, características que fazem do poeta A. Pedro Ribeiro um verdadeiro filho de Maio de ’68 . São dois poemas povoados de um erotismo imbuído no sagrado, a exaltar o hyerogamos, ou acasalamento sagrado, a lembrar antigos rituais Gregos ou Babilónios.
“Cristo Ébrio”
Regresso
serpentes masturbam-se na areia
estradas aquáticas
golpes de espuma celebram
o orgasmo de Neptuno.
Procuro o beijo
o anel sagrado
sou serpente ébria (…)
serpente ébria
danço canto
enfeitiço…
Este poema e o seguinte sugerem um ritual dionisíaco, marcado pelo ritmo caótico, desenfreado de um voraz bailado de Ménades, como se pode ver no poema
“Um poeta em fogo”
Distingo ao longe
um cenário onírico
adornado
de cores perversas
(…)
Vulcões vomitam cometas
flores desabrocham
em arco-íris embriagadas.
Cascatas inflamadas
trepam a catedral.
Caânticos dionisícos
em redor da fogueira
corpos enlaçados
em delírio carnal.
(…)
Em toda a obra se assiste ao triunfo da Loucura sobre a Razão que está especialmente manifesto em “Representação”.
Mas em “Devaneios” começam a notar-se alguns ecos de Baudelaire e da sua obra As Flores do Mal
“Devaneios”
Toma-me a alma
Conduz-me ao fim da noite
(…)
Encharca de whisky o meu cadáver vivo”
(…)
Vem pintor surrealista
acende na tela
a sombra imensa do martírio
conduz-me a noite sem fim”
O último dos poemas de à mesa do homem só..., com o qual o autor presta homenagem aos sem-abrigo, exprime a total e completa insubmissão à norma e a necessidade de afirmação e de ser aceite na plenitude da diferença, que comporta a sua forma de estar no mundo, com todos os desvios:
“Queimam as horas mal-dormidas sobre um banco de jardim.
No cérebro estalam vulcões, montanhas. A viagem recomeça, rumo ao cume.
Dentro do sonho existem lugares verdes (…)
Quiseram prender-me. Atirar-me para o hospício.
Mas eu não estava lúcido. E os inquisidores fugiram de mim.”
Uma escrita onírica sim, porque pictórica, onde as imagens se sucedem, se fundem formando o caos aparente, onde se concentra o vórtice de emoções e sensações impossíveis, incomportáveis na morna quietude de quotidiano…
À mesa do café está o último reduto que abriga alguém que encarna a rebeldia de quem prega no deserto, no meio de víboras e escorpiões.
Um livro no qual, segundo o Autor,
“tudo acaba, tudo começa à mesa do homem só que escreve, descreve, constrói cenários, delineia paisagens. O resto são estímulos, sinais exteriores, perspectivas de contacto, imagens.”
Clamamos, portanto, por uma reedição.
Urgente.
à mesa do homem só. estórias
A. Pedro Ribeiro
Silencio da Gaveta
2001
por Claudia Sousa Dias
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