sábado, 6 de dezembro de 2008

HAKIM BEY E NIETZSCHE


A TARDE 26/07/2003 - Cultural
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Filosofia
HAKIM BEY/NIETZSCHE

A odisséia do Caos

Pérsio Menezes

Eu vos digo: é preciso ainda ter caos dentro de si, para dar a luz a uma estrela
bailarina". Esta é uma das passagens mais famosas da obra de Nietzsche. Citada
exaustivamente nos contextos mais inesperados. No entanto, continua, toda vez
que é repetida, a transmitir a beleza e a precisão com os quais a idéia foi
exposta. Nietzsche chegou a afirmar certa vez que as primeiras pessoas que
poderiam compreender verdadeiramente sua obra só apareceriam por volta da virada
do século XXI.

Saber desta declaração faz perguntar-se se a escolha da música Assim Falou
Zaratustra, de Strauss, para as cenas iniciais do filme 2001 Uma Odisséia no
Espaço, de Stanley Kubrick, foi proposital neste sentido. O fato é que passamos
a virada do século e circulam pela Internet uma série de textos assinados pelo
pseudônimo Hakim Bey, que estão aglutinando em torno de si os aspirantes ao que
Nietzsche chamava de "espíritos livres".

A autoria destes textos, no entanto, não é certa: a revista Time tentou
entrevistar Bey e não o localizou. Cogita-se que ele seja o autor Peter Lamborn
Wilson, mas não há certeza. O pseudônimo tem um aposto: Profeta do Caos. A
editora Conrad lançou agora o segundo livro do tal profeta: Caos - Terrorismo
Poético e Outros Crimes Exemplares. O livro reúne escritos que vêm publicados e
reproduzidos em diversos sítios da Internet, em inglês, desde meados da década
de 90, e têm recebido cada vez mais audiência e comentários tanto por parte do
meio acadêmico (principalmente nos campos ligados à cibercultura e nos círculos
dos chamados estudos culturais), da cultura pop de uma maneira geral, da mídia
alternativa e da parte mais cool da mídia mainstream.

Os escritos de Bey ecoam fontes heterogêneas - e não são poucas: Artaud,
Bakunin, Khayyam, os poetas beatnik, Rumi, Rabelais, Burton, o situacionismo,
etc -, mas entre todas, com certeza a mais proeminente é Nietzsche. Abundam
referências explícitas ou sutis ao autor de Além do Bem e do Mal. E mais: um dos
pontos mais fortes do pensamento de Bey é a apropriação dele da idéia de moral
do filósofo alemão, como explicita nesta passagem:

"O super-homem nietzschiano, se existisse, teria de compartilhar, até certo
grau, desta criminalidade, mesmo se superasse todas as suas obsessões e
compulsões, simplesmente porque sua lei nunca poderia concordar com a lei das
massas, do Estado e da sociedade. Sua necessidade de guerra (seja literal ou
metafórica) poderia até mesmo persuadi-lo a participar da revolta, tenha ela
assumido a forma de insurreição ou apenas de uma boemia orgulhosa".

Um dos melhores textos do livro tem como título Nietzsche e os Devirxes, no qual
a comparação com os místicos sufis sintetiza e amplifica alguns pontos do
pensamento de Nietzsche: "Uma pessoa precisa provar (para si mesma e não para
alguém mais) sua capacidade de romper com as regras do rebanho, de fazer sua
própria lei e ainda assim não cair presa do rancor e do ressentimento próprios
das almas inferiores que definem a lei e os costumes em qualquer sociedade".

RETÓRICA AFIADA - A partir desta apologia do indivíduo, Bey vai desconstruindo,
com retórica afiada, várias das máximas que compõem o panteão de idéias dos
pretensamente revolucionários, mas que são na verdade apenas reformuladores de
leis: "A pessoa precisa (...) de uma estupidez inerte contra a qual possa medir
seu movimento e inteligência".

Outro ponto de estreitamento entre as palavras de Nietzsche e as de Bey é a
recorrente citação (em Bey) do nome de Hassan-i-Sabbah. Trata-se do líder da
seita místico-política Hashishins, que atuou na Pérsia por volta do século XII
trabalhando com o objetivo de minar o poder imperial. O lema da seita é o famoso
"nada é verdadeiro, tudo é permitido". Nietzsche trata dele no parágrafo 24 da
terceira dissertação de Genealogia da Moral, mas a seita de Sabbah aparece como
a síntese da idéia nietzschiana de moral, os espíritos livres por excelência.
Nos anos 60, os beatniks William Burroughs e Brian Gysin deram fama a Sabbah ao
associar o lema da seita à percepção de realidades múltiplas proporcionada pela
ingestão de substâncias psicotrópicas, traço que marcou a contracultura desde
então. Bey tem dupla ligação com Sabbah: além de síntese das idéias dos
precursores, Bey o toma como um expoente da cultura moura, à qual se alinha.

Ao tratar de Sabbah, Bey sempre adquire um tom poético: "Ao cair da noite,
Hassan-I-Sabbah, como lobo civilizado de turbante, debruça-se no parapeito e
contempla o céu, estudando pequenos asterismos de heresia no ar seco e sem rumo
do deserto". Nietzsche também fazia da expressão parte integrante das mensagens.
Não há como expressar novos pensamentos com frases velhas. E é justamente nos
trechos em que Bey aproxima a prosa da lírica da poesia que sua forma mais se
aproxima da de Nietzsche:

"Dar voltas sem destino na velha picape, pescar e coletar alimentos, deitar na
sombra lendo quadrinhos e comendo uvas - essa é nossa Economia. A realidade das
coisas quando libertas da Lei, cada molécula uma orquídea, cada átomo, uma
pérola para a consciência alerta - esse é nosso culto. O Airstream tem tapetes
persas em todas as paredes, a grama está cheia de ervas satisfeitas". Compare-se
com esta passagem do prólogo de Ecce Homo: "Os figos caem das árvores, são bons
e doces: e ao caírem rasgam-se sua pele rubra. Um vento do norte sou para os
figos maduros. Assim como os figos vos caem esses ensinamentos, meus amigos:
bebei seu sumo e sua doce polpa! E outono em torno e puro o céu da tarde".

Além da afinidade de idéias, de determinados temas em comum e dos pontos de
aproximação da forma, ambos são pensadores cujas obras dão margem a uma série de
interpretações contraditórias. Eles não aspiram produzir opiniões bem
fundamentadas e ponderadas. Antes, eles são uma máquina para despertar a
reflexão.

DESPERTAR O MAINSTREAM - Para ler Bey, é necessário aceitar que em um momento
ele deseja colocar o pescoço em risco somente para quebrar os hábitos
instaurados, como propõe em Terrorismo Poético (também para divertir-se, é bem
verdade) e num momento seguinte ele despreze quaisquer tipos de manifestações
revolucionárias. Naquele texto ele sugestiona a ação de uma série de
intervenções culturais na sociedade, no formato dos happenings, do teatro dos
anos 60/70, e outros tipos de "chistes" para chocar e despertar as pessoas do
senso comum:

"Organize uma greve em sua escola ou trabalho em protesto por eles não
satisfazerem sua necessidade de indolência e beleza espiritual" ou ainda:
"Vista-se de forma intencional. Deixe um nome falso. Torne-se uma lenda". Já em
Nietzsche e os Devirxes, ele diz: "(...) esse espírito livre teria desdenhado
perder tempo com agitações para reformas, com protestos, com sonhos visionários,
com todo tipo de "martírio revolucionário" (...).

SOBRE O CAOS - Porém, a despeito de todo o prestígio e veneração que Bey concede
a Nietzsche, há uma divergência que os separa: a própria idéia de caos, que
aparece como o laço de união entre todos os textos desta coletânea. Para o
pensamento aristocrata de Nietzsche, o caos é uma inquietação, uma busca por
algo que nem se sabe exatamente o que é, mas sempre caracterizado, marcado e
determinado pela necessidade de auto-superação, como nesta passagem de Ecce
Homo:

"Hierarquia das faculdades; distância; a arte de separar sem incompatibilizar;
nada de misturar, nada de conciliar; uma imensa multiplicidade que, no entanto,
é contrária ao caos - esta foi a precondição, a longa e secreta lavra e arte do
meu instinto" (note-se que ele usou a palavra multiplicidade para designar a
mesma idéia que na passagem da estrela bailarina ele chama de caos, e usou a
palavra caos no sentido de desorganização, algo a ser evitado).

Já em Bey, a idéia de caos aproxima do niilismo dos poetas beatnik, mais
precisamente ao niilismo iconoclasta de Willian Burroughs. No texto Teoria do
Caos e a família Nuclear, Bey torna-se um outsider, no melhor estilo Ginsberg, a
observar crianças num parque, até o momento que troca olhares com um menino que
capta o que ele descreve como o cheiro do tempo, liberto de todas as amarras da
escola, das lições de música, dos acampamentos de férias, das noites familiares
ao redor da TV, dos domingos no parque com papai - tempo autêntico, tempo
caótico. "Nietzsche não desejaria libertar o menino das tarefas de casa e das
aulas de música. Ele acredita que a auto-superação passa pelo aprendizado de
obedecer a si próprio e coloca na autodisciplina este conhecimento.

Esta tradução editada pela Conrad já tinha sido publicada no site
www.baderna.org (Baderna é o selo da editora para livros na área da
contracultura). Com o lançamento do livro, foram retirados, provavelmente por
razões comerciais. É impressionante o poder que a indústria tem de apropriar-se
dos elementos mais proscritos. Em determinado momento, Bey diz: "(este livro)
não abana o rabo e não grunhe, mas morde e estraga a mobília. Ele não tem um
número ISBN e não o quer como discípulo, mas pode seqüestrar seus filhos". A
despeito do enorme serviço à cultura que a Conrad presta ao publicar Caos, o
ISBN de Caos é 85-97193-93-7.

1 comentário:

Hiena disse...

Bom texto.
Tentei consultar www.baderna.org mas infelizmente o "domain" está para venda.
Abraço