quarta-feira, 21 de abril de 2010

CRÍTICA DE SÉRGIO ALMEIDA A "UM POETA NO PIOLHO"

Na orgia de egos em que se tornou boa parte da poesia portuguesa contemporânea – o meu umbigo é maior do que o teu, dirá o jovem poeta X ao poeta jovem Y –, é reconfortante depararmo-nos com exemplos como o de A. Pedro Ribeiro, cuja escrita catártica questiona a submissão dominante.

O autocomprazimento, o artificialismo, que nos habituámos a ler em autores incensados pela crítica do costume são abandonados de bom grado por uma escrita despojada, mas cujo carácter directo, muitas vezes cru, não deve ser confundido com simplismo poético. É aqui parece-me que reside a grande virtude da sua escrita: o mérito de conseguir encontrar num real tantas vezes agreste e sujo elementos poéticos que concretizam esta aliança improvável entre o belo e o abjecto.

Se, como dizia Oscar Wilde, estamos todos na sarjeta mas alguns de nós olham para as estrelas”, saudemos os que, como o Pedro, mantêm esse olhar inaugural sobre as coisas, um feito que a esmagadora maioria de nós vai perdendo infelizmente com o decorrer dos anos.

Não significa que o poeta viva fora da realidade ou que abdique dela para se refugiar num mundo de sonhos, atractivo e glamoroso porque impossível de ser alcançado. Como explica o próprio: “Apenas elimino as partes da realidade que não me interessam. A realidade económica não me interessa! Outros que estudem o desemprego, a inflação, a crise. Outros que sejam realistas. E que façam contas e balanços. A mim o que me interessa é a vida. A vida plena, autêntica, vivida no sentido nitzscheano. Não me parece que isso tenha a ver com as estatísticas, nem com gráficos, nem com curvas”. (fim de citação)

Numa altura em que se confunde tanto a poesia do quotidiano com a poesia da vidinha, apenas susceptível de interessar aos próprios autores, Pedro Ribeiro assume-se como alguém com a missão de narrar a vida tal como ela é. Sem interpretações fugidias ou esotéricas e apenas com o desejo de fixar no papel episódios que decorrem sob os nossos olhos mas aos quais raramente damos importância.

Num dos poemas aqui incluídos, intitula-se mesmo “poeta de café”. A designação faz todo o sentido – ali sentado durante horas consegue manter sobre as coisas um olhar ao mesmo tempo distante e próximo. O seu trabalho consiste em observar o homem no seu próprio habitat, detectar as suas minúsculas manias de grandeza e escarnecer daqueles que vivem unicamente para o trabalho, convencidos de tal forma da sua própria importância que se esquecem de viver.

Como escreve em “A mensagem”, “ao homem-mercadoria, ao homem-percentagem, ao homem-número, ao homem-vencido, há que opor o homem criador, o homem que diz sim à vida, não à vidinha da submissão, não à vidinha da rotina, não à vidinha do rebanho, mas sim à vida plena, à vida plena, à vida alegre, à vida autêntica”.

É provável que haja uma grande dose de ingenuidade no autor – e que bom seria se todos fossemos ingénuos – quando diz que a solução para todos os males reside em queimar o dinheiro, em destruirmos os símbolos de um sistema financeiro que tornou o homem refém das suas ambições. Infinitamente imaginativo na capacidade de multiplicar a perversidade, o ser humano não tardaria decerto a criar outro instrumento, outro modelo, através do qual essa liberdade seria rapidamente transformada numa nova forma de aprisionar os desejos. “O dinheiro é de todos e de ninguém” clama o autor e somos forçados a concordar com isso mesmo, mesmo sabendo do carácter utópico da premissa. Nascido em Maio de 68, não em Paris mas aqui no Porto, A. Pedro Ribeiro adoptou como divisa um dos slogans dessa estupenda revolta juvenil, tão vilipendiada que acabou por se tornar um slogan de uma marca automóvel: “Sejamos realistas, exijamos o impossível”.

Com “Um poeta no Piolho”, o autor quis prestar tributo a esse café que há um século tem cativado geração após geração de apreciadores da noite portuense mas também de amantes de poesia, tertúlia e convívio.

Como explica o Pedro Ribeiro na contracapa do livro, o Piolho sempre foi um espaço de liberdade, sinónimo de tertúlias animadas e conversas etilicamente bem regadas que tanto podem versar sobre mulheres como literatura, futebol ou filosofia.

É caso para perguntar, pois, que melhor junção poderia existir entre um autor que clama como poucos a vontade de ser livre e o desejo de não estar sujeito às convenções mais estereotipadas e um local que sempre fez da livre discussão e do debate amplo dois dos seus princípios elementares?

Esta unidade temática não afasta Pedro Ribeiro um milímetro dos territórios que lhe são mais caros: o apego indómito à liberdade, o hedonismo cerrado e a recusa em fazer parte do que considera ser o rebanho, a maioria silenciosa que aceita passivamente as ordens dos que nos regem.

Na sua mira estão precisamente estes últimos, os que impõem a sua visão

Num dos seus poemas mais notórios, Pedro Ribeiro entoa uma declaração de amor ao primeiro ministro. Suficientemente aguçada para provocar nos detentores do poder – tanto aos actuais como a quaisquer uns - uma sensação de desconforto que não tardaria, porém, a ser desvalorizada por estes, caso fossem confrontados com poemas como os que aqui se apresentam.

Também as mulheres ocupam nestes escritos um papel não negligenciável. A fixação de Pedro Ribeiro pelos atributos físicos do belo sexo pode desagradar às feministas mais empedernidas e até eventuais críticas de misoginia. Erro crasso, já se vê. A mulher é para este poeta o ser ideal, quantas vezes glacial e indiferente, que acrescenta novos significados à existência. Provocantes e sedutoras, reduzem à insignificância, ou seja, à sua real importância, questões que nos pareciam decisivas.

A visão de Pedro Ribeiro sobre o universo feminino encontra-se bem presente em “A musa de flores no cabelo”, que passo a ler agora:



“E ao Piolho até já vêm

Musas de flores no cabelo

Dirigem-se ao balcão

Usam dinheiro como as outras

S. Francisco

Flores no cabelo

Agora senta-se à minha frente

Só falta dar-me um sorriso

Bebe o café

Olha

Talvez me ame

Ando a ler o poeta Holderlin

Que fala do amor por uma mulher

Diotima

Que fala do amor que já não há

Tal como já não se usa

Escrever no café

Sou o único poeta que escreve

No café

Mas o que importa é que veio o amor

E a musa de flores no cabelo

Já se foi

E o Telejornal fode-me a cabeça”



Mas o poeta que apela à rebelião é também capaz de uma docilidade evidente, exemplarmente manifesta no poema “É a ti que eu quero”:



“É a ti que eu quero

Mulher que passas

E me saúdas

É a ti que eu quero

Mulher que bebes

E te sentas com as amigas

E não tens preconceitos

E não vais em modas

É a ti que eu quero

A ti que andas pela cidade

À solta

Que te ris do mundo

E das palavras do poeta

É a ti que eu quero

Não preciso de andar mais

À procura

É a ti que eu quero

Quando a noite cai

E o dinheiro falta

É a ti que eu quero

Agora neste café às moscas

É a ti que eu quero

Mulher que passas

E me encantas”



A terminar, gostaria de apontar o contraste curioso que existe entre os excessos do pensamento de Pedro Ribeiro, o seu desejo de consumir a vida até ao filtro, e a afabilidade do seu trato, uma gentileza que quase já não se usa. Escasseiam-me argumentos em matéria de psicologia para dirimir convosco este paradoxo, mas quer-me parecer que a escrita desempenha para o autor a possibilidade de escapar a um real muitas vezes cinzento e, através dessa mesma escrita, propor mundos alternativos, sem duvida mais estimulantes ao serem regidos não pela aparência e vaidade mas pela autenticidade. Quando “os títulos dos jornais sabem a esquizofrenia” e por todo o lado se vê submissão, a solução, segundo o poeta, é só uma: “Tornemo-nos deuses em vez de carneiros. Demos caos ao caos”.

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