segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

CRÍTICA DE ANTHERO MONTEIRO A "UM POETA NO PIOLHO"

20/01/2010 – “O POETA NO PIOLHO” de A. Pedro Ribeiro

Pede-me o Pedro Ribeiro que apresente este seu livro de poemas intitulado O Poeta no Piolho, que inclui inéditos, mas também outros textos já publicados noutros livros, que conheço, supondo eu, pelo título da colectânea, que todos foram escritos no café Piolho, que o autor frequenta e onde se sente em casa – como ele próprio confessa.
Esta solicitação é de todo inesperada e formulada muito em cima da hora, pelo que me será relevada alguma falta pelo pouco tempo que tive para poder corresponder cabalmente ao expectável, porque li o livro e alinhei algumas ideias entremeadamente numa altura de viagens e de outras ocupações.
Disse que não esperava ter esta incumbência, sobretudo porque a minha poesia e a do Pedro são muito diferentes na forma e no conteúdo e não escondemos algumas divergências de fundo sobre conceitos poético-literários.
Apesar disso, falar deste livro é um desafio que aceitei com prazer e honrado pelo convite, porque é mais um ensejo de aprendizagem e até de revisão dos meus próprios conceitos. Aprender motiva-me muito mais, aliás, do que ensinar. E, além disso, pelo Pedro e pela necessidade de o compreender melhor, vou transformar-me em advogado… do diabo.
É que, apesar das divergências, nutro pelo Pedro um amizade respeitosa, que só não é mais profunda porque apenas nos encontramos aqui no Púcaros e porque as nossas vivências e conceitos até de cidadania, ao que parece, estão longe de ser próximos ou paralelos. O Pedro é alguém que cumprimento e de quem me despeço nesta casa com um abraço de afecto sincero e em cujos olhos entrevejo um sentimento de comovedora ternura pelos outros e pelas coisas.
O Pedro Ribeiro seria alguém que poderíamos equiparar a qualquer normal e pacífico cidadão, não se desse o facto de ele subir ao tablado nesta casa, entendendo-se por tablado o espaço entre colunas onde à quarta-feira se lê poesia.
É aí então que o Pedro se transforma por completo e todos enfrentamos o perigoso “animal de palco”, papel que ele assume, ipsis verbis, num dos textos do seu livro:

“Este personagem atinadinho faz-me bocejar de tédio (…). Eu gosto é mesmo da festa, da celebração, do animal de palco. É aí que eu acredito no amor, na vida, na vibração. Sou doido, completamente doido, fora da tua realidade, minha rica” (tratamento menos habitual no Pedro e que é igual à expressão usada por outro doido que o Pedro admira, Mário de Sá-Carneiro, no seu poema “Caranguejola”).

É que o Pedro Ribeiro não é só o poeta que escreve, mas também o que lê os seus poemas – e não se trata aqui de uma simples leitura, mais ou menos neutra, mais ou menos branca, como recomendam alguns especialistas e se pratica, por exemplo, nas Quintas de Leitura do Teatro do Campo Alegre. O Pedro, quando escreve um poema, já se imagina nesse papel de actor ou de “performer” e é um espectáculo poder apreciá-lo com tudo o que nele há de gingão, peripatético, histriónico até.
É por isso que a análise da sua poesia tem que ter em conta essa relação existente entre quem produz um texto e quem o reproduz oralmente para um público como no teatro. O “animal de palco” vive desejoso dessa glória de saltar para o tablado. E o palco começa no próprio café onde ele escreve freneticamente, compulsivamente (“As palavras vêm ter comigo” – diz ele), pois já aí pode ser visto, como um actor no seu camarim, por um público que se movimenta à volta da sua mesa, que de vez em quando lhe faz perguntas, que sabe que ele é quem é, uma espécie de iluminado, mas alguém que tem também luz própria e que ilumina principalmente as “gajas” que por ali ondeiam, a quem oferece poemas, fazendo, nelas, incidir um foco de luz mais forte sobre as “mamas”, como parte proeminente e anatomicamente predilecta.
O palco é o lugar onde o Pedro esquece a sua inquietude e ansiedade, o seu mal-estar quotidiano, a sua incompetência para viver normalmente, como acontece com a protagonista do Livro do Desassossego.
É por tudo isto, sobretudo por esta impossibilidade de dissociar o poeta do “diseur” ou do “performer”, portanto do actor, que eu não tenho dúvida alguma em asseverar que a poesia do Pedro Ribeiro é muito mais teatro do que poesia.
É que o género dramático serve muito mais os seus textos de invectiva (como a Declaração de amor ao primeiro-ministro: “Estou apaixonado pelo primeiro ministro / Quero vê-lo num filme porno”). É essa forma que serve melhor os seus poemas-manifestos (como o “Poema de amor inocente em jeito de manifesto autárquico para a cidade do Porto”). É esse tablado que mais o ajudaria a realizar a revolução que procura (“Sim, sou definitivamente um poeta de café e até um revolucionário de café, com todo o gosto.”). É esse palco onde mais facilmente realizaria o comício para arrebanhar mais gente para a sua causa (“Farto-me de apelar à revolta / E esta merda permanece igual. / Fiquemos juntos / Acariciemo-nos /Curtamos o amor”).
A necessidade de comunicação imediata com o seu público, ávido do seu verbo (“’estou a ficar farto de tantos rodeios’ / como Morrison / quero o aqui e o agora! Quero a eternidade, / o instante eterno, agora!” – escreve ele), obriga-o a deixar-se levar pelas tais palavras que o visitam. Não é ele que as escolhe. Elas é que o escolhem a ele e, por isso, não há nos seus poemas, grandes preocupações com a forma. O que interessa é o conteúdo e esse conteúdo tem urgência em ser matéria de comunicação, em passar para o outro lado (“Como me sinto sublime agora. Já estou em condições de passar a palavra.”), porque a sua escrita e a sua actuação no palco são também propaganda (“admiro o Paiva / é um activista incansável / eu não sou um activista / ou deixei de o ser / só faço propaganda / quando subo ao palco / ou quando os meus livros têm leitores”). O que interessa é que a mensagem surta efeito e fique bem gravada nas cabeças e, tal como acontece com a publicidade, há slogans que se repetem (“o dinheiro é de todos e não é de ninguém / o dinheiro é de todos e não é de ninguém / o dinheiro é de todos e não é de ninguém»), há “gajas” por todo o lado (“E chegam mais gajas. Isto hoje é sempre a abrir. Um gajo até se perde”) e há mais cerveja a gorgolejar até no deserto, nem que seja apenas por mera miragem (“enquanto houver cerveja / continuarei a escrever”; “o estado devia fornecer-me cerveja gratuitamente, deveria pagar-me em cerveja”; os gajos dos bares deveriam fornecer-me / gratuitamente álcool para eu produzir”).
Esta comunicação instante recorre inclusivamente ao calão, sem qualquer censura, porque necessita dele para chamar os bois… e as vacas pelos nomes: para invectivar “esses filhos da puta” dos capitalistas, para nos convencer da “merda” que é estar num estado de espírito de absoluta fossa, para “se cagar para as vossas conversas”, para dizer com o José Mário Branco, no seu FMI, “que se foda o futuro!” ou para “mandar tudo para o caralho”.
E esta linguagem de urgência para “passar a palavra”, como ele diz, funciona maravilhosamente, sobretudo quando quem tem o privilégio de ouvir os seus poemas está também a beberricar cerveja, o que acontece sobretudo nos bares onde jorram também habitualmente os seus versos, como acontece no Púcaros. E o efeito é surpreendente, tanto mais que a sua actuação agarra os ouvintes como um íman: não consegue certamente induzi-los a queimar o dinheiro, como ele preconiza, não consegue fazer abrir as pernas das gajas a torto e a direito, não consegue, por exemplo também, persuadir os ouvintes a deixar de trabalhar, como ele faz, mas consegue convencê-los de que o poeta ou o actor parece ser sincero e coerente naquilo que escreve e que, no mínimo, realiza os objectivos que definiu para a sua escrita e que estão consignados no final do 2.º texto do livro: “(…) continuo a escrever / faço disto o meu escritório /(…) / também é uma forma de combater o tédio / de observar a sociedade de consumo e do mercado / de analisar o comportamento dos meus semelhantes / de descarregar a alma» (e este último objectivo é essencial para um “doido”, como ele se define…).
Agora a minha opinião sobre a qualidade destes poemas:
Se analisarmos os seus textos com as lunetas embotadas da crítica académica; se não percebermos que a sua aposta é na desestabilização dos conceitos arreigados e que a sua construção é antes de tudo uma desconstrução para se iniciar tudo de novo (ele escreve no texto “Mensagem”: “Destruir para construir. Começar do zero.”); se procurarmos no que escreve a obediência às normas tradicionais em vez de vermos as novas questões que surgem com a permanente transgressão (Paul Louis Rossi diz que “não pode existir poesia sem transgressão das suas formas mais utilizadas”); se andarmos à cata do poético nos seus versos, quando há críticos, como este que acabei de mencionar, autor do Vocabulário da Modernidade Literária, que defendem que o poético não existe, o que existe é uma relação, entre as palavras e as coisas, condensadas na linguagem, a qual (relação) produz um efeito particular de emoção e surpresa», então, a esta luz algo cansada, a poesia de Pedro Ribeiro estará porventura muito próxima da nulidade.
O próprio poeta, embora considere tocar por vezes “o sublime” nos seus textos, admite que “nem todos são brilhantes”. De facto, muitos deles, uns em prosa, outros em verso, não passam de meros apontamentos ou notas do que vai presenciando, como por exemplo: “Personagens de outrora / Atravessam o ‘Piolho’ / O homem bebe, escreve / Permanece na sua / Não espera ninguém / Nem sequer a dama.” Outros há, porém, que nos colhem na tal “surpresa” de que fala o Paul Louis Rossi, ainda que o estratagema para concluir de chofre o poema seja por vezes repetitivo: é o Gomes que vem cobrar a conta (“e corta o ritmo”); é o Fred que chega “e a escrita esgota-se”; é a menina das “mamas boas” que o Poeta se põe a apreciar, mas entra também “um gajo importuno (que) se senta à minha frente / tapa-me a visão / e corta-me o poema”, ou, finalmente, “a musa de flores no cabelo” que chegou, mas “já se foi / e o Telejornal fode-me a cabeça”.
E há ainda outros poemas que não vou ler por serem mais extensos, mas cuja leitura recomendo vivamente para se conhecer este poeta não apenas superficialmente, com a frivolidade de quem só veio cá beber umas cervejas: por exemplo, o texto intitulado “Diário” que bem podia chamar-se “Ideário”, porque resume quase todo o seu pensamento; o poema “Garrafa”, pequeno em extensão, mas, graças a um maior e mais sábio fechamento, grande em sugestões plurissignificativas; os 9 versos do poema “A saudação triunfal do gerente”, em que ele consegue a solidariedade de todos e de tudo o que está à sua volta para também o saudarem como alguém que não é bem deste mundo e vive noutra galáxia; o caos que é o “poema de amor inocente em jeito de manifesto autárquico para a cidade do Porto”, em que, baseado na técnica surrealista do inventário, nos dá a imagem caótica de uma sociedade inteira; ou, finalmente, para não me alongar, a parte final do “Poema que cura”, a rebentar de anáforas, numa linguagem uma vez mais profundamente teatral e propagandística.
Mas a preocupação do Pedro Ribeiro, como já disse à saciedade, não é escrever bonito. Ele está-se cagando para o lirismo e a beleza; para ele, isso é algo para transformar na sua contrária. Ele próprio afirma: “Dá-me um poeta lírico / para foder esta noite / uma cara bonita / para desfigurar”.
Este é um poeta sui generis. Homem culto, filósofo, capaz de escrever bem e melhor, se quiser, inventou para si próprio uma imagem que sacrifica a sua normalidade, para se ir autoconstruindo outro: um solitário que quer dominar as multidões pela palavra; um servidor permanente de Dionisos, sempre mais próximo dos instintos, das paixões, da irracionalidade e do caos do que da razão (“vade retro, razão”- escreve), da ordem, do equilíbrio e da sociabilidade de Apolo; um discípulo de personalidades malditas que lhe emprestam atrevimento para se vestir também de anjo negro e contaminar o mundo; enfim, um funâmbulo que evolui sobre o risco permanente e que tanto pode maravilhar quem o vê caminhar sobre a corda como pode tropeçar e cair no abismo, sobretudo (ele não aceita conselhos, mas nós somos seus amigos) se se ficar pelas gajas, pelas mamas, pelas cervejas e pelo uso do calão pelo calão e, como é seu timbre tudo pôr em causa, se não começar também a pôr-se em causa a si mesmo, à sua poesia e a uma certa repetitividade de temas e de processos. Ele sabe melhor do que ninguém que a repetição fabrica o estereótipo, que ele tenta por todos os meios combater e, a meu ver, deve combater em si próprio.
A poesia de Pedro Ribeiro é herdeira de vários pensamentos e atitudes (“sigo apenas os meus mestres” – escreve ele), muitos deles citados abundantemente no livro: em primeiro lugar, Nietzsche com quem chega a identificar-se ou pelo menos com a sua personagem Zaratustra que, diz ele, “foi rejeitado pela populaça/ e eu também sinto que o sou / talvez estejamos / demasiado elevados para a populaça”), depois Jim Morrison, André Breton, Henry Miller, Paul Éluard, Sade, Raoul Vaneigem, Baudelaire, Verlaine, Rimbaud, Lautréamont, Sá-Carneiro e Joaquim Castro Caldas, de quem ele inveja sobretudo o seu estado permanente de embriaguez. Mas não podemos esquecer a influência da Beat Generation (Ginsberg, Kerouac, Ferlinghetti, entre outros), que desafiaram, como ele o faz, os valores académicos e as normas do bom-gosto, que adoptaram uma ética e uma estética de total liberdade e se recusam ao encerramento num dado espaço ou escola.
A estes modelos podemos adicionar Charles Bukowski, mais velho que os da geração beat, mas de alguma forma próximo, porque adoptou também a marginalidade, o ócio, as mulheres, o sexo e a bebida como uma espécie de valores, sendo de supor que Pedro Ribeiro tenha herdado dele não apenas estes requintes, mas também alguns barris de cerveja para embebedar os próprios poemas. Aliás, outra personagem importante na vida de Pedro Ribeiro parece ser Jesus Cristo-Homem (“julgo-me o Morrison ou o Cristo”), que já lhe deve ter ensinado a fazer o milagre da multiplicação, não dos pães nem dos peixes, mas da cerveja, até porque pode bebê-la indefinidamente e…

«Porra! Nunca mais fico bêbado!
Bebo e nunca mais fico bêbado!
Quero ficar bêbado como o Joaquim Castro Caldas!
Quero ficar bêbado como o Jim Morrison!»

Haveria muito mais a dizer sobre este livro do Pedro Ribeiro, mas não quero maçar-vos mais. Fiz, de facto, um esforço por entendê-los, ao poeta e à sua poesia, tentei inclusivamente acreditar na sua coerência de anarquista. Ele não precisa da minha compreensão para nada, porque vai continuar a traçar o seu rumo livremente, sem as nossas intromissões. Para nós, simples mortais que nunca tocaremos o sublime, nem tudo no Pedro é de fácil entendimento: é mesmo muito complicado, por exemplo, compreender alguém que se recusa a trabalhar e que, candidatando-se agora à Presidência da República, se mostra preocupado com os desempregados…
Mas acredito que ele se julgue coerente e isso basta. Para entendê-lo ainda melhor, só me resta beber copiosamente com ele à nossa amizade, à sua saúde, ao sucesso do seu livro e da sua candidatura à presidência. Saia uma cerveja para mim e outra para o Pedro, que pago eu!

Anthero Monteiro

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