terça-feira, 17 de novembro de 2009

HAKIM BEY


Tuesday, August 26, 2008
Nietzsche e os Dervixes

Rendan, ``Os Espertos''. Os sufis usam um termo técnico, rend (adjetivo rendi, plural rendan), para designar alguém ``esperto o suficiente para beber vinho em segredo sem ser pego'': a versão dervixe da ``dissimulação permissível'' (tagiyya, que permite aos xiitas mentir sobre sua verdadeira afiliação para evitar perseguições e favorecer o propósito de sua propaganda).
Na esfera do ``caminho'', o rend esconde seu estado espiritual (hal) para contê-lo, trabalhá-lo alquimicamente, expandi-lo. Esta ``esperteza'' explica muito dos sigilos das Ordens, embora continue sendo verdade que muitos dervixes realmente quebraram as regras do Islã (shariah), ofendem a tradição (sunnah) e insultam os costumes de sua sociedade - o que lhes dá razão para um segredo real.

Ignorando-se o caso de ``criminosos'' que usam o sufismo como uma máscara - ou melhor, não o sufismo em si, mas o dervixismo, que na Pérsia é quase um sinônimo de maneiras transigentes e, portanto, de relaxamento social, um estilo de amoralidade genial e pobre, mas elegante - a definição acima ainda pode ser considerada tanto num sentido literal quanto metafórico. Isto é: alguns sufis violam a Lei ao mesmo tempo permitem que ela exista e continue a existir; e eles o fazem por motivos espirituais, como um exercício da vontade (himmah).

Nietzsche diz em algum lugar que um espírito livre não se move para que as regras ou mesmo para que sejam reformuladas, uma vez que é apenas quebrando as regras que ele se conscientiza de sua vontade de querer. Uma pessoa precisa provar (para si mesma, se não alguém mais) sua capacidade de romper com as regras do rebanho, de fazer sua própria lei e ainda assim não cair presa do rancor e do ressentimento próprios das almas inferiores que definem a lei e os costumes em QUALQUER sociedade. A pessoa precisa, com efeito, de um equivalente individual da guerra para atingir a transformação do espírito livre - necessita de uma estupidez inerente contra a qual possa medir o seu próprio movimento e inteligência.

Anarquistas às vezes postulam uma sociedade ideal sem lei. Os poucos experimentos anarquistas que lograram um breve êxito (os makhnovistas, Catalunha) fracassaram em sobreviver às condições da guerra que originaram sua existência - dessa forma, não temos meios de saber empiricamente se tais experimentos poderiam ter sobrevivido no início da paz.

Alguns anarquistas, no entanto - como nosso falecido amigo, a ``Marca'' stirneriana italiana -, e até mesmo alguns que eram comunistas e socialistas, participaram de toda sorte de levantes e revoluções, porque encontraram, no momento da insurreição em si, o tipo de liberdade que buscavam. Enquanto a utopia tem, até agora, sempre fracassado, os anarquistas individualistas ou existencialistas têm logrado êxito visto que têm obtido (embora brevemente) a realização de sua vontade durante a guerra.

As restrições de Nietzsche aos ``anarquistas'' são sempre endereçadas ao tipo mártir comunista-igualitário narodnik, cujo idealismo ele via como mais um sobrevivente do moralismo pós-cristão - embora ele algumas vezes os elogie por ao menos terem a coragem de se revoltar contra a autoridade majoritária. Ele nunca menciona Stirner, mas acredito que teria classificado o rebelde individualista como um dos mais altos tipos de ``criminosos'', que representavam para ele (assim como para Dostoievski) seres humanos muito superiores à multidão, mesmo se tragicamente traídos por suas próprias obsessões e possíveis motivos de vingança ocultos.

O super-homem nietzschiano, se existisse, teria de compartilhar, até certo grau, dessa ``criminalidade'', mesmo se superasse todas as suas obsessões e compulsões, simplesmente porque sua lei nunca poderia concordar com a lei das massas, do Estado e da sociedade. Sua necessidade de ``guerra'' (seja literal ou metafórica) poderia até mesmo persuadi-lo a participar da revolta, tenha ela assumido a forma de insurreição ou apenas uma boemia orgulhosa.

Para ele, uma ``sociedade sem lei'' poderia Ter valor apenas enquanto pudesse medir sua própria liberdade contra a sujeição de outros, contra seus ciúmes e ódios. As breves ``utopias piratas'' sem lei de Madagascar e do Caribe, a República de Fiume de D’Annunzio, a Ucrânia ou Barcelona - essas experiências o atrairiam, porque prometia o tumulto do porvir e até mesmo a possibilidade do ``fracasso'' em vez da bucólica sonolência de uma ``perfeita'' (e portanto morta) sociedade anarquista.

Na ausência de tais oportunidades, esse espírito livre teria desdenhado perder tempo com agitações para reformas, com protestos, com sonhos visionários, com todo tipo de ``martírio revolucionário'' - em suma, com a maior parte da atividade anarquista contemporânea. Para ser rendi, para beber vinho em segredo e não ser pego, para aceitar as regras a fim de violá-las e assim atingir a elevação espiritual ou o transe energético do perigo e da aventura, a epifania privada da superação de toda polícia interior ao mesmo tempo em que se engana toda autoridade externa - tal poderia ser uma meta válida para esse espírito e essa poderia ser sua definição de crime.

(Incidentalmente, acho que esta leitura talvez explique a insistência de Nietzsche pela MÁSCARA, pela natureza dissimulada do proto-super-homem, que perturba até mesmo os comentarias mais inteligentes, embora algo liberais, como Kaufman. Os artista por mais que Nietzsche os ame, são criticados por contar segredos. Talvez ele tenha falhado ao considerar que - parafraseando Allen Ginsberg - este é nosso modo de nos tornarmos ``grandes''; e também que - parafraseando Yeats - até mesmo o mais verdadeiro dos segredos torna-se uma outra máscara.)

Sobre o movimento anarquista de hoje: pelo menos uma vez, gostaríamos nós de pisar num solo onde as leis são abolidas e o último padre é enforcado com as tripas do último burocrata? Sim, claro. Mas não nutrimos grandes expectativas. Há certas causas (para citar Nietzsche de novo) que nunca abandonamos completamente, nem que seja apenas em função da mera insipidez de todos os nosso inimigos. Oscar Wilde poderia ter dito que não se pode ser um cavalheiro sem ser um pouco anarquista - uma paradoxo necessário, como a ``aristocracia radical'' de Nietzsche.

Isso não é apenas uma questão de dandismo espiritual, mas também de compromisso existencial com uma espontaneidade subjacente, com um ``Tao'' filosófico. Apesar do desperdício de energia pela sua Própria falta de forma o anarquismo, entre todos os ISMOS, aproxima-se daquele único tipo de forma que pode nos interessar hoje, aquele estranho atrator, a forma do caos, que (uma última citação) se deve ter dentro de si, no caso de dar à luz a uma estrela dançarina.

-- Equinócio de Primavera, 1989
Posted by Timóteo Pinto at 11:28 AM
Labels: dervixes, Nietzsche, sufismo

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