quinta-feira, 4 de junho de 2009

O LONGO POEMA


Nos últimos dias tenho-me sentido particularmente bem
de bem com o mundo
apesar de não concordar com ele
a consciência está tranquila
o espírito leve
a escrita flui
as pessoas são simpáticas
sinto-me a caminho de uma nova Idade do Ouro
apesar dos telejornais
e das campanhas eleitorais
apesar da coscuvilhice das vizinhas
e da maledicência
sinto-me em cima
realmente em cima
não é que o poema seja brilhante
não é que ele mude a face da Terra
mas sinto-me realmente bem
em paz comigo mesmo
a caminho de qualquer coisa de novo
qualquer coisa de puro
uma nova fase na minha vida
e as pessoas vêm ter comigo
apreciam a minha poesia
dizem que o último livro é o melhor
apesar de, por vezes, me estender demasiado
como agora
parece que estou no psiquiatra
a expôr o meu estado de espírito
e apetece-me beijar a Joana
que limpa o cortador do fiambre
e eis a femme fatale cá do sítio
que entra com o namorado
estou numa fase em que me atiro a todas
apesar de ter namorada
e lá me vou contentando com os trocos que tenho
este poema talvez não seja grande coisa
para dizer em público
mas a coisa lá vai fluindo
no Sábado escrevi cinco
bem sei que tenho as minhas megalomanias
mas temos de ser algo narcisistas
senão começam a ter pena de nós
nunca liguei tão pouco a uma campanha eleitoral
como a esta
talvez esteja a ficar apolítico
como alguém já disse
talvez esteja a perder os preconceitos
não sei que importância isto terá para o cidadão comum
o que eu queria mesmo era que uma destas gajas bonitas
que não conheço de lugar nenhum
viesse falar comigo
isso é que era a vida
isso é que era a espontaneidade
mas isso não vai acontecer
já o sei
as pessoas fecham-se muito em grupos
só a D. Rosa é que meteu conversa comigo
o calor aperta
e as gajas descascam-se
até aqui em Vilar do Pinheiro
se começa a ver alguma coisa
e este poema está pouco incisivo
não é daqueles a matar
vai rodeando, rodeando
os poemas são o reflexo do nosso pensamento
a taxa de desemprego subiu para 9,3%
as notícias do país também interferem no poema
os poemas são o reflexo do nosso pensamento, dizia,
com uns cortes, com umas correcções
a verdade é que as gajas só vêm falar connosco
espontaneamente quando estão bêbadas
e nós também somos um bocado assim
em resumo: deveríamos andar sempre bêbados
e o mundo seria melhor
e depois vem a "Hallelujah" do Jeff Buckley
e o mundo fica melhor
até acreditamos que existe algo de superior
talvez até Deus
não, definitavamente acho, como Henry Miller,
que isso a que chamamos Deus está dentro de nós
e isso, efectivamente, nada tem a ver
com o que dizem os economistas, os eurodeputados, os eurocratas
não, este definitavamente não é um poema
para ser dito em público
não tem aquele ritmo
não é suficientemente mordaz
talvez já estejamos a falar demais
- como diria o meu pai-
o poema já tem um comprimento apreciável
não é que os poemas se meçam aos palmos
mas não me vou pôr para aqui a dizer poemas
de 15 ou 20 minutos
como a gaja que há dias aqui disse a "Tabacaria"
e pronto! Lá estou eu a falar para o público do "Púcaros"
quanto estou na confeitaria "Motina"
deveria falar para esta gente
mas esta gente não me ouve
está focada na vidinha de todos os dias
não me vou armar em profeta
talvez eu, no fundo, seja um pregador
como disse o Sindulfo
bem, acho que vou dizer só uma parte do poema
sempre posso usar esse truque
afinal de contas, venho aqui todas as semanas
gastar saliva
alguma coisa há-de ficar de toda esta prosa
ando a escrever textos muito longos
- já o diz a Alexandra-
não consigo dar a estocada final
vou rodeando, rodeando- já o disse
já me estou a repetir
e assim acaba.

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