segunda-feira, 15 de junho de 2009

EM PAZ


Parece que a pastilha fez efeito
hoje sinto-me um homem novo
acredito no divino que está no homem
não em todos os homens, claro
há homens pequenos, já dizia Nietzsche
a pastilha acordou o divino
já vejo o mundo com outros olhos
bem sei que ele está cheio de rapina e sofrimento
mas não deixo de sentir a ternura
aquela ternura que sinto por ti
aquela ternura do tamanho do mundo
aquela ternura que vence o tédio
há pessoas que levam uma vida absolutamente previsível
não é o meu caso
tenho dias de tédio, claro,
mas também tenho tardes em que a divindade
se senta comigo na confeitaria
e para tal só preciso de papel, caneta
e 55 cêntimos para o café
mais nada, absolutamente mais nada
estou em paz
a música bate suave
e até me apetece beijar a empregada
há instantes como este
instantes eternos
em que vivemos 1000 anos em poucos segundos
em que agradecemos aos livros e aos poetas
e a algumas pessoas
não somos mais do que os outros
somos apenas diferentes
pertencemos a outra tribo
até parece que o cérebro trabalha mais depressa

amamos a loucura
não temos de andar sempre a exteriorizá-la
mas podemos agarrá-la
é isso que nos distingue
não temos medo dela
mas agora estou em paz
não preciso de subir ao palco
observo o espectáculo do mundo
os carros passam cheios de pressa
e eu aqui na minha
não tenho pressa nenhuma
não tenho de cumprir horários
nem tarefas
limito-me a estar aqui
a escrever, a observar, a ouvir a música
sinto-me uma espécie de rei
reino sobre estas terras
nem preciso de dar ordens
nem de impôr coisa nenhuma
basto-me a mim próprio
cheguei onde quero chegar
já ao acordar senti alguma coisa diferente
de madrugada fui ao computador
clamar por uma pastilha que me curasse
e cá estou, de novo, em cima
de novo em paz
o divino está no homem
só pode estar no homem.


Vilar do Pinheiro, "Motina", 15.6.2009