quarta-feira, 9 de julho de 2008

ENTREVISTA COM ALLEN GINSBERG


Entrevista com Allen Ginsberg

A Folha publicou entrevista inédita com o poeta beat norte-americano morto dois dias antes, aos 70, em Nova York.

Eduardo Simantob da Publifolha



A morte de Allen Ginsberg, ocorrida anteontem, não deixa lacunas. Durante meio século o escritor americano dedicou-se não só a uma extensa obra poética, como também ao ensino da literatura como ato de liberdade e militância político-ambiental. E a mensagem já está dada. Ginsberg escreveu bastante, falou mais ainda e participou combativamente das transformações da América do pós-Guerra. Lutou contra a censura, combateu a proibição do LSD (1966), protestou contra a guerra do Vietnã, contra as armas nucleares e militou pela preservação da natureza.

Em 1994, Ginsberg foi procurado pela Folha para falar sobre o escritor William Burroughs, que na época completava 80 anos de idade. A entrevista, inédita, acabou se estendendo à sua poesia, ativismo e ecologia. A seguir alguns trechos.

Folha - Como o senhor resumiria a importância de William Burroughs na literatura americana?

Allen Ginsberg - Burroughs tem uma influência na cultura dominante americana muito maior do que ele mesmo imagina. Devido ao processo contra seu livro ''Almoço Nu'', ele abriu as portas da censura para que novos autores escrevessem o que quisessem. Muitos dos seus temas continuam e continuarão importantes, como controle do pensamento, drogas, sexualidade gay, Estados policiais etc. Mesmo na cultura pop, bandas como Steely Dan e Soft Machine devem seus nomes a títulos de livros seus e, mais ainda, à técnica dos cut-ups (colagem de textos e imagens não tão ao acaso, desenvolvida por Burroughs e pelo pintor Brion Gysin nos anos 60).

Folha - E o senhor experimentou também os cut-ups?

Ginsberg - Só no começo, mas essa técnica foi incorporada por vários escritores, como Dennis Cooper e Hunter Thompson, sem falar dos músicos. Os garotos do U2 outro dia vieram me mostrar um videoclipe (da turnê ''Zootour'') influenciados pelo cut-up.

Folha - Mas o cut-up não é uma técnica original, os dadaístas e surrealistas do início do século...

Ginsberg - Sim, eles faziam algo que se chamava ''corpos estranhos''. Dois artistas trabalhavam numa mesma tela sem saber o que o outro fazia, depois juntavam tudo. Mas o cut-up não é um processo inconsciente, é uma forma de dar sentido a esse inconsciente.

Folha - O senhor trabalhava o cut-up na sua poesia?

Ginsberg - Não exatamente. Eu também fotografo e desenho. Nas fotos eu escrevia notas sobre as coisas que estavam acontecendo quando foram tiradas. Ao juntá-las tenho toda uma história contada de um modo não usual.

Folha - Hoje os ''beats'' estão virando moda na América, a mídia dando às suas obras um espaço até hoje inédito. Isso é uma surpresa?

Ginsberg - Não. Creio que a obra ''beat'' é tão forte que já pode ser tomada como referência literária. Nós tocamos em questões permanentes: o império americano, ecologia, revolução sexual, censura. Também há a questão do ''terceiro caminho'', nem comunismo nem capitalismo, que pregávamos enquanto os intelectuais procuravam extremos do marxismo ou do anticomunismo. Nossa preocupação é alterar estados de consciência e achar soluções ecológicas, não ideológicas.

Folha - Mas isso também pode levar a interpretações variadas do que se diz ou escreve, não?

Ginsberg - Meu negócio é poesia. Ao produzir não posso controlar o que as pessoas farão depois, dizer o que elas devem fazer com suas próprias mentes. E nem gostaria, eu seria um ditador. O melhor que posso fazer é propor alternativas e me abrir às pessoas que queiram aprender comigo.

Folha - E qual é sua principal preocupação hoje?

Ginsberg - O problema básico é o da hipertecnologia consumindo o planeta numa escala que destruirá as possibilidades humanas. Li hoje uma entrevista de Jacques Cousteau (oceanógrafo francês) em que ele diz: ''Estou agora lutando pela minha própria espécie, buscando conceitos para as gerações futuras''. Para ele, o divórcio entre a humanidade e a natureza é irreversível, mas o homem deve se lembrar que ainda depende da natureza. Mas, como eu, ele tem esperança no futuro.

Folha - E há futuro na literatura americana?

Ginsberg - Há um presente. Quem estiver escrevendo, em qualquer língua, está levando a literatura para frente, mas deve sempre se lembrar que a imortalidade só vem depois.



Sutra do Girassol

Caminhei nas margens do abandonado cais de lata onde outrora
descarregavam banana e fui sentar na sombra enorme de uma locomotiva lá perto
para olhar e chorar o sol morrendo em ladeiras sobre as casas todas iguais.
Jack amigo Kerouac sentou-se ao lado no ferro de um mastro roto partido
e a gente caiu na maior fossa do mundo, os dois ilhados, dois contidos
na rede das raízes de aço,
e eu e Jack pensando os mesmos pensamentos da alma.
No rio a correnteza de óleo refletia o céu rubro, o sol caía
pelas alturas finais de San Francisco, sem que houvesse
peixe nessas águas, sem que houvesse um ermitão nas montanhas, só a gente
com olhos de ressaca e remela, feito vagabundos, cheios de astúcia e cansaço.
Olha só um girassol, Jack então disse, e havia o vulto inerte e cinzento
seco, do tamanho de um homem, recostado
num monte milenar de serragem.
- Eu pulei de alegria e era o primeiro girassol de minha vida, eram memórias
de Blake - essas visões - o Harlem
e os rios do inferno-leste, sanduíches indigestos trotando
um ranger de pontes, carrinhos de bebê encalhados, esquecidos
pneus de bojo negro careca, penicos
& camisas-de-vênus, o poema da margem, canivetes, nada inox, só o mofo
o lixo de tantas coisas cortantes cujo fio passava
para o passado -
e o cinzento girassol se equilibrando ao sol-posto,
desmanchando-se abatido na invasão da fuligem, da fumaça, do pó
de velhas locomotivas no olho -
corola e também coroa com as pontas amassadas virando, com sementes
despencando do rosto, rompendo em breves dentes um dia
claro, raios de sol grudando em seu cabelo riscado
como uma exangue teia de aranha de arame;
caule com braços-folhas jogados, os gestos da raiz de serragem,
pedaços de reboco minando nos galinhos queimados
e uma mosca estagnada no ouvido,
você de fato era uma incrível coisa imprestável, ó meu girassol minha
alma, e como eu te amei então!
sujeira não era parte do homem, era a parte da morte e das locomotivas
humanas,
simples roupa empoeirada, o simples véu da pele férrea, a cara
da fumaça, as pálpebras da escura miséria, a mão
ou falo ou tumor mortiço do imundo motor moderno industrificial disso
tudo, o bafo da civilização poluindo
tua coroa muito louca de ouro -
esses turvos pensamentos de morte, a grande falta
de amor em fins e olhos tapados, raízes abafadas em areia
e serragem, os dólares raspantes elásticos, o couro das máquinas, as
tripas enroscadas de um carente carro que tosse, as solitárias
latas baratas com línguas rotas de fora, e o que mais seja, a cinza
que escorre pela boca na ereção de um charuto, a boceta
de um carrinho de mão, ou os seios acesos de viaturas lácteas, o rabo gasto
que as cadeiras expelem, o esfíncter dos dínamos - tudo
isso embolado nas raízes-múmias -
e você aí de pé na minha
na tarde da minha frente, a sua glória em sua forma!
beleza perfeita, um girassol! uma tranqüila e girassol existência
excelente e perfeita! um olho doce natural para a melancolia da lua
nova, desperto vivo excitado
sacando no crepúsculo sombra a brisa mensual de ouro aurora!
enquanto você lançava blasfêmias
para o céu da via férrea e sua própria floralma,
quantas moscas zumbiram na sua extrema imundície
sem ligar para nada?
Quando, flormortapobre, você esqueceu que é uma flor?
quando olhou sua pele e decidiu que era a velha
suja locomotiva impotente? o fantasma de uma
locomotiva? o espectro e sombra de uma já poderosa
locomotiva americana maluca?
não, girassol, você não foi locomotiva nunca, você foi sempre um girassol!
você, locomotiva, você é o motivo louco de sempre, a locomotiva!
pensando isso peguei o grosso girassol esqueleto e o finquei a meu lado
como um cetro
fiz o meu sermão à minha alma, e também à de Jack, e tambérn à de todos
que ainda queiram ouvir:
Não somos a sujeira da pele, não somos nossa locomotiva medonha triste
poeirenta com ausência de imagem, nós somos todos uns lindos girassóis
por dentro, somos sagrados por nossas próprias sementes &
peludos pelados dourados corpos de ação virando girassóis ao crepúsculo
loucos girassóis formais e negros que esses olhos espiam
na sombra da locomotiva maluca margem beira
San ladeiras Francisco
tarde de lata
sol-posto sentar-se vision.



Tradução de Leonardo Fróes

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