quinta-feira, 13 de dezembro de 2007

DO AMARAL


O diseur

É um homem como os outros. Está sentado num café a beber cerveja. De repente, levanta-se e começa a recitar versos em voz alta. Um cliente aproxima-se e dá-lhe uma vigorosa bofetada. O homem, parecendo não se incomodar, redobra o tom de voz e insiste nos versos.
Uma velha, muito irritada com a pouca vergonha, ergue o punho e aplica, por sua vez, um soco rápido e seco na cara do impassível diseur, com uma agilidade e determinação surpreendentes para a sua idade. O homem, no entanto, cerra os olhos e esforça-se por elevar ainda mais a voz. Os empregados do café e os outros clientes caem-lhe então em cima, numa fúria avassaladora. Murros e pontapés seguem-se uns aos outros com uma constância assinalável. O homem muda de cor, perde o nariz, estilhaça as rótulas, mas não se deixa vergar pelo evoluir dos acontecimentos.
- Ah!, pudesse eu ser presa de um fogo cruel ou engolido pelo mar tempestuoso! – grita o homem, quase sem dentes, debaixo de uma nuvem de socos e bofetadas.
Ora, dadas as circunstâncias, é fácil prever o que se segue. O dono do café, que é uma alma justa e boa, segura um revólver e alveja o homem no peito. Em consequência, o homem morre. É muito bem feito. Ninguém recita versos nos cafés.
publicado por Rui Manuel Amaral às 1:18 PM 1 comentários

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