domingo, 5 de junho de 2005

Teses Sobre a Visita do Papa

1. Ó Estado, mais uma vez podes limpar as mãos à parede do cu do papa, ficarás com as mãos mais brancas para os teus crimes. Ó partidos, da esquerda e da direita, mais uma vez podeis beijar os pés ao papa, ficareis com a boca abençoada para mentir melhor. Explorados, escolhei o crime, escolhei a mentira. Sois livres. Tu poeta, range os dentes e indigna-te.
2. Que o Estado venere a Deus na figura do papa, que os partidos venerem o Estado na figura do papa; que os explorados venerem a Deus, o Estado, o Partido- a trindade omnipresente. Enfim, o poder temporal subordinado ao poder sobrenatural. Nem Deus nem senhor? Maldita incurável doença infantil do comunismo. Explorado, escolhe o explorador.
3. O Estado que te submete é republicano e reverencia a Igreja, o Partido em que militas é marxista e felicita o papa, o Sindicato onde estás inscrito é revolucionário e saúda a reacção. A greve geral é uma arma que não deve ferir o papa. Nada contra o obscurantismo. Paz ao inimigo. Quem disse que a religião é o ópio do povo? Explorados, que escolheis?
4. Sobretudo, nada de escândalo. Uma pedra branca sobre o crime, uma pedra negra sobre a crítica. Ecrasez l' infâme, dizia Voltaire. O silêncio dos ateus é o ouro do Vaticano. Explorado, escolhe a pedra para a tua cabeça.
5. Conquistar a liberdade de expressão para não usar a liberdade de expressão. Não denunciar o opressor, não ousar atirar-lhe à cara a revolta, sequer na forma de um cravo. Ver, ouvir, receber o papa com o medo do 24 de Abril. Explorado, porque não vomitas?
6. Explorado, sê manso e obedece. Pode ser que entres no reino dos céus, de camelo ou às costas de um rico. Obedece. Pode ser que vás para a cama com a pátria. Obedece. Pode ser que o teu cadáver ainda venha a ser estandarte glorioso do Partido. Nunca percas a esperança, explorado, jamais.
7. Abaixo a união livre. Viva a coexistência pacífica. O casamento do capital e do trabalho vai ser o grande casamento do século. Não haverá oposição dos pais nem da polícia. Sobretudo, tudo menos a erotização do proletariado. Felicidades, explorado.
8. Ouvi falar da luta de classes e da revolução e do mundo que o proletariado tem a ganhar e nada a perder. Ouvi falar das armas da crítica e da crítica pelas armas. Ouvi falar em transformar o mundo e mudar a vida. Ouvi falar de que enquanto um homem, um só que seja, e ainda que seja o último, existir desfigurado, não haverá figura humana sobre a terra. Nunca tinha ouvido uma sereia assim. Ouviste, explorado?
9. O diálogo? Que diálogo pode haver entre o condenado à morte e o carrasco que o conduz ao patíbulo? O diálogo é entre amantes, entre amigos, entre camaradas. Fora disso não há diálogo. Tens a palavra, explorado.

ANTÓNIO JOSÉ FORTE (1931-1988), in "Uma Faca nos Dentes", Revista Utopia nº 19/2005. http://www.utopia.pt

Sem comentários: